quarta-feira, 20 de agosto de 2008

MULHER TAMBÉM FAZ CORDEL


O folheto de cordel
Que o povo tanto aprecia
Do singelo menestrel
À mais nobre academia
Do macho foi monopólio
Do europeu foi espólio
Do nordestino alforria

Desde que chegou da França
Espanha e Portugal
(Recebido como herança)
De caravela ou nau
O homem o escrevia
Fazia a venda e lia
Em feira, porto e quintal

Só agora a gente vê
Mulher costurando rima
É necessário dizer
Que de limão se faz lima
Hoje o que é limonada
Foi águas podre, parada
Salobra com lama em cima

A mulher não se atrevia
Nesse campo transitar
Por isso não produzia
Vivia para seu lar
Era o homem maioral
Vivia ele, afinal
Para o mundo desbravar

Tempo de patriarcado
Também de ortodoxia
À mulher não era dado
Sair pela cercania
Exibindo algum talento
Pois iria a julgamento
Quem não a condenaria?

Era um tempo obscuro
Para o sexo feminino
O castigo era seguro
Para qualquer desatino
Como não sabia ler
Como podia escrever
E mudar o seu destino?

Sem ter a cidadania
Vivendo vida privada
Pouco ou nada entendia
Não era emancipada
Só na cultura oral
Na forma original
Se via ela entrosada

Nas cantigas de ninar
Na contação de história
Tava a negra a rezar
A velha sua memória
Porém disso não passava
Nada ela registrava
Para sua fama e glória

Muitas vezes era tida
Como musa inspiradora
Aquela de cuja vida
Tinha que ser sofredora
Era mãe zelosa e pura
Qual sublime criatura
Porém não era escritora

Sempre a versão do homem
Impressa nalgum papel
Espero que não me tomem
Por feminista cruel
Mas o fato é que a mulher
Disto temos que dar fé
Tinha na vista um véu

O homem que a desejava
Queria-a qual princesa
Sempre que a venerava
Era por sua beleza
Só isto tinha virtude
Para macho bravo e rude
Mulher com delicadeza

De sua cria cuidando
Cosendo calça e camisa
Para o homem cozinhando
Como vir ser poetisa?
Isto era coisa para macho
Até hoje ainda acho
Gente que assim profetiza.

Até porque o folheto
Era vendido na feira
E era um grande defeito
Mulher sem eira nem beira
Era preciso viagens
Contatos e hospedagens
Pra fazer venda ligeira

E durante muitos anos
Assim a coisa se deu
Em muitos cordéis tiranos
A mulher emudeceu
O homem falava dela
Mas não falava com ela
Nem ela lhe respondeu

Ocorre que em trinta e oito
No ano mil e novecentos
Um fato dito afoito
Veio soprar outros ventos
Uma mulher escreveu
No cordel se intrometeu
Mostrando novos talentos

Talvez seja o primeiro
Cordel de uma mulher
Neste solo brasileiro
Nenhum registro sequer
Confere a este fato
Que seja o dito exato
Mas não é coisa qualquer

Filha de um editor
Família de trovadores
Se esta mulher ousou
A ela nossos louvores
Mas temos a lamentar
Porque não pode assinar
O verso como os autores

Não era uma desvalida
Que escrevia um cordel
Mas uma moça entendida
Parente de menestrel
Mesmo assim se escondia
Pois a vida requeria
Não assumir tal papel

A Batista Pimentel
Com pré-nome de Maria
Não assinou o cordel
Como a história merecia
Mas que o destino tirano
Um Altino Alagoano
Era quem subscrevia

Pseudônimo usou
Para a obra ser aceita
O marido orientou:
“Assim tudo se ajeita”
Tava pronto pra vender
Quem poderia dizer
Ser o autor a sujeita?

Neste tempo já havia
Escola, educação
Alguma mulher já lia
Tinha certa instrução
Tinha delas que votavam
Outras até trabalhavam
Nalguma repartição

Outro tempo aparecendo
Reclamando outra postura
A população crescendo
Emprego e certa fartura
Indústria se instalando
O povo se empregando
Buscando alguma leitura

Mas foi muito gradual
No campo do popular
Tinha aqui um bom sinal
E um retrocesso acolá
No nordeste nada é reto
Até hoje analfabeto
Não conhece o beabá

Somente em setenta e dois
Vicência Macedo Maia
Viria escrever depois:
Nascia o verso de saia!
No estado da Bahia
Deu-se a tal rebeldia
Que hoje não leva vaia

Depois disso, alagoana
Potiguar e cearense
Também tem a sergipana
Paraíba e maranhense
Tem delas no Piauí
Também estão a surgir
Paulista e macapaense

Em todo o nosso Brasil
Mulheres versejam bem
Muito verso se pariu
Não se excluiu ninguém
Tem rima a dar com pau
-acho que me expressei mal-
Pois com a vagina também

Mas a grande maioria
Se concentra no nordeste
Onde um dia a poesia
Era do cabra da peste
Hoje as mulheres estão
Rimando e não é em vão
Do litoral ao agreste

Talvez seja sintomático
Que o cordel no sertão
Ainda seja simpático
E noutros lugares não
O tal cordel já foi tido
Como jornal e foi lido
Em muita ocasião

Serviu para ensinar
Muita gente aprender a ler
Serve para recitar
E muita gente entreter
Cordel é sempre estudado
Em tese de doutorado
Mas tem gente que não vê

Alguns pensam hoje em dia
Que cordel é só tolice
Que não tem categoria
Que é mera invencionice
Feito por homem, não presta
Por mulher então, detesta
Veja quanta idiotice

Mesmo assim elas versejam
E muito bem por sinal
Algumas até desejam
Ir para uma bienal
Mostrar a nossa cultura
A nossa literatura
Etecetera e coisa e tal

Versos de todos os matizes
De toda forma e cor
Algumas são infelizes
Reproduzindo o horror
Do machismo autoritário
Consumismo perdulário
Que tanto as dominou

Mas são as contradições
Presentes neste sistema
Onde mulheres padrões
Vivem também nos esquemas
Eu só quero é celebrar
Da mulher o versejar
Longe dos velhos dilemas

Nosso tempo nos permite
Botar o verso na rua
Quem vai colocar limite
Quem ousa sentar a pua?
Cordel também é cultura
Quem nunca fez a leitura
Iletrado continua

O cordel é centenário
Nesse Brasil de mistura
É recente no cenário
Da fêmea a literatura
Só estamos começando
Devagar, engatinhando
Quem agora nos segura?

Trinta cordéis eu já tenho
Publicados pelo mundo
Mais uma vez me empenho
Me emocionando no fundo
Metade é sobre mulher
Para mostrar como é
Amor e verso profundo

Aqui encerro meu verso
Cumprindo o meu papel
Se ele foi controverso
Deselegante ou pinel
Só quis dizer para o povo
O que pra alguém é novo:
Mulher também faz cordel!

MEU PAI

Meu pai por ser um pedreiro,
Dele muito me orgulho
Sempre foi muito guerreiro
Homem de muito barulho
Seja mexendo o cimento
Seja curando o tormento
Ele desata o embrulho

Sempre foi desenrolado
Atento, astuto, sabido
É homem pouco letrado
Porém muito esclarecido
Por isso nesse cordel
Reconheço seu papel
De pai teimoso e querido

Nascido em 44
No nordeste brasileiro
Um cearense de fato
Um matuto, um roceiro
Arribou de Várzea Alegre
Jovem, à sorte entregue
Foi se arranchar no Granjeiro

Chegou pela Cana-Brava
Trabalhou, foi serviçal
Arroz, feijão apanhava
Cuidou também de animal
Era um rapaz arrojado
Nunca foi acomodado
Era este um bom sinal

Viveu nas casas alheias
Longe do seu “habitat”
Ia acanhado pra ceia
Era comum se deitar
Em qualquer canto do chão
Porque não tinha um tostão
Pra uma rede comprar

Porém como desejasse
Melhorar a sua vida
E muito se interessasse
Em sair daquela lida
Resolveu então partir
Pra muito longe dali
Onde lhe dessem guarida

Sonhava em ir para o sul
E arranjar um emprego
Mirava o céu azul
Como quem quer um brinquedo
Mas um dia decidiu
Da Cana-Brava partiu
Foi enfrentar o seu medo

Nesse tempo já gostava
De quem hoje é minha mãe
Que ficou na Cana-Brava
Numa angústia sem “tamãe”
Foi lá pros anos 60
Que segundo ele comenta
“Havia progresso e gãe”

Fugindo do desemprego
No tal êxodo rural
Meu pai foi pedir arrêgo
Na maior das capital
E se vendo sem dinheiro
De lavrador a pedreiro
Subiu na vida, afinal

O ofício era pesado
Mas tinha de trabalhar
Ficava admirado
Com tantos prédios no ar:
“São Paulo é feito das mão
Dos nordestinos irmão
Que não param de chegar"

Depois dum tempo in Sampa
- tijolo, massa, cimento-
Viu um bem-te-vi que canta:
“na cacunda d'um jumento”
Era um quadro na parede
"No lugar de botar rede
Eles botam é monumento"

Quando juntou uns tostão
Veio para o Ceará
Somente pedir a mão
Desta que ficou por cá
Em poucos dias casou
E a esposa levou
Pra no sul dele cuidar

Cada ano que passava
Um filho via nascer
Em São Paulo um brotava
No Ceará, outro ser
Ao todo tiveram seis
Sou a segunda da vez
Cá estou para escrever

Por três décadas seguidas
Meu pai ia e voltava
Pontilhava nossas vidas
Ou cá, ou lá ele estava
Edificando a cidade
E perdendo a mocidade
Enquanto a gente estudava

Tijolo sobre tijolo
Ferro, massa, telha e cal
Aniversário sem bolo
São João, finados, Natal
Onde era mato, um produto
Igreja, escola, viaduto
Shopping, motel e canal

Seguia a vida querendo
Não fracassar, nem sofrer
Algumas noites bebendo
Outras no frio, a tremer
Muitas agruras passou
Até que o álcool deixou
E nunca mais quis beber

Fez muita casa aonde
A vida parece bela
E o arranha-céu esconde
Os barracos da favela
Deixou em cada azulejo
Tatuado um desejo
Que fosse aquilo novela

Viu o progresso de perto
E a miséria do lado
Falava de peito aberto
Com seu sotaque arrastado
“Eta sul fí d’uma égua
Um dia dou uma trégua
Vendo meus filho formado”

Enfim comprou uma terra
Nem míni nem latifúndio
Teve que entrar noutra guerra
Fazendo um corte profundo
Depois duma cirurgia,
Mudou o seu dia-a-dia
E retornou pro seu mundo

Voltou a viver no mato
Conforme sempre gostou
Mas não perdeu o contato
Com o mundo exterior
Agora rega o estrume
Contempla o vaga-lume
Colhe laranja e fulô

Deixou o prumo e a linha
Pegou enxada e pá
Tem lá a sua casinha
E terra pra cultivar
Merece a minha homenagem
Porém não tenho coragem
Desse verso recitar

Hoje é homem da lida
Do trabalho no roçado
Retornou à velha vida
Mesmo estando cansado
Pois para se aposentar
Teve ele que provar
Que nunca ficou parado

Mesmo assim ele é feliz
Porque no mato nasceu
Voltou a sua raiz
(o pedreiro não morreu)
Ressurge o agricultor
Com quem mamãe se casou
E deu origem a eu

Terminando esse poema
É preciso relembrar
Que o pedreiro foi tema
Pra um poeta exemplar
O grande Chico Buarque
Traduziu na sua arte
O seu valor singular

Com os olhos embebidos
Entre lágrima e cimento
Mas quase nunca esquecidos
Dessa vida de tormento
Subindo o patamar
Ou na roça a plantar
Reconheço seu talento

Operário em construção
Autoridade paterna
Homem de convicção
De atitude fraterna
Meu pai, um grande herói
A sua história constrói
A idéia que nos governa!

O GRITO DOS "MAU" ENTENDIDOS

Era uma assembléia
Só de homossexuais
Era geral a geléia
Havia gente demais
O discurso era polido
Todo mundo era entendido
Nas ciências sociais

Chegou a televisão
E o jornal foi chamado
Não podia ser em vão
(Que evento do babado!)
O roxo e o rosa-choque
Prometiam dar ibope
(gay adora ser filmado)

Algo cultural rolava
Antes da programação
Chico César animava
Com uma bela canção
Logo se comprometeu:
“Esse homem nu sou eu”
-olhos de contemplação!-

Disse ainda sem pudor:
“eu já fui mulher, eu sei”
Vitor Fasano gritou:
“Eu to gostando, meu rei”
Pepeu Gomes aplaudindo:
“Já fui homem feminino,
Fiz escola, inaugurei...”

Cássia Eller convidada
Cantou exibindo a teta
Uma garota excitada
Pedia outra faceta
De repente o som parou
Ângela Ro Rô chegou:
“porrada ou um som porreta?”

Quando recitou Bethânia
A turma ficou ligada:
“quando você me entendeu
Eu não entendia nada”
Calcanhoto, seu recado:
“transito entre dois lados”
É verdadeira cantada.

Um amor tão delicado
Nenhum homem (lhe) daria
“Caetano tá enganado"
Grita João, brada Maria
Neste evento inusitado
Não há como ser lembrado
Se não for por alegria

Os crachás distribuídos
As teses por todo lado
Líderes já escolhidos
Para um debate animado
O “dignidade já!”
Era a senha pra entrar
Bastava ser delegado

A imprensa esperava
Um “furo” para mostrar
Mas ao passo que falava
Gabeira entrava no ar
Politizou o debate
E lançou um xeque-mate:
“gay também sabe votar”

Disse ele: “hoje eu sei
E o Brasil precisa ver
Que o movimento gay
Existe e é pra valer
Pra bater no preconceito
Pra lutar pelo direito
De amar e de viver!

O entendido precisa
Também se organizar
Tem de vestir a camisa
(de Vênus, é bom lembrar)
Neste mundo desigual
Quem for homossexual
Também precisa lutar!

É grande o preconceito
Contra o homossexual
Exijamos mais respeito
Da lei e do tribunal
Imposto também pagamos
Basta! Já não toleramos
A pecha de marginal

A violência também
Precisa ser combatida
Não é dado a ninguém
Manipular nossa vida
Ele ou ela, não importa
Se fulaninha “é morta”
Que seja uma morta-viva!

AIDS e DST’s
Assolam nosso habitat
Vamos fundar comitês
E contra elas lutar
Vamos junto com o povo
Construir um mundo novo
Onde o lema seja amar”

Ouvindo tudo calado
Um homem ficou de pé
Na roupa tinha um bordado
Escrito: “Jesus me quer”
Gabeira disse: você
Tem algo a nos dizer?
E ele: meu nome é Dé!

O povo todo aplaudiu
E ele continuou
Confessou usar “renew”
E disse: “sou o que sou,
“E venho de uma terra
Onde um padre, numa serra
Um dia me abençoou”

Ele invocou São Francisco:
“é dando que se recebe”
E elogiou Corisco:
“Mas Dadá é o que se pede”
E disse, sem preconceito:
“O rio só corre no leito,
Enquanto a margem não cede”

“Falsa é a sociedade
Que nos cospe e abomina
Eu lhes digo, em verdade
Ser ‘alegre’ é minha sina
Se um dia nasci homem,
Mesmo que tudo me tomem
Eu sempre quis ser menina”

“Por que não amaldiçoam
Os governos de opressão?
Por que só de nós caçoam
Diante da multidão?
O povo tem que entender
Porque o gay pode ser
Seu primo, pai ou irmão”

Ademais eu vou falar
-escute amigo meu-
“se o povo de Quixa(dá)
E se também Ama(deu)
Se o povo do Su(dão)
Ta(deu) para seu irmão
Por que não posso dar eu?”

E o debate seguiu
Num nível sempre elevado
Uma garota pediu
Que o tempo fosse marcado
Após as resoluções
Serviram as refeições
E um filme foi mostrado

Foi Aimeé e Jaguar
O filme que se exibiu
Um romance pra lembrar
Até o mês de abril
Quando o povo então verá
Os “mauditos” do Juá
Gritarem para o Brasil

O grito de que se fala
É o do “mau” entendido
Aquele que o mundo cala
Tal qual o mal resolvido
Pois o grito que escutei
Não foi o “ai, eu gozei!”
Foi o grito do oprimido

E para finalizar
Confesso que acordei
Fiquei então a pensar
Naquilo com que sonhei
É bom que não fique torto
O grito do povo morto
Eu só psicografei.