O MILAGRE TRAVESTHRILLER:
A HISTÓRIA DA TRAVESTI QUE
(COM FÉ) ENGRAVIDOU
La libertad de la fantasía no es ninguna huida a
la irrealidad; es creación y osadía (Eugène Ionesco)
Subindo a Serra do Horto
Ao som do 'baby pirei'
Com seu olhar absorto
Curtindo seu happy day
Ao lado da comitiva
Desfila ela, a diva
Orgulho da causa gay
De baby-look brilhosa
E mini-saia rendada
Com sua bota estilosa
E a cabeleira dourada
Beijando o seu amor
Ela entoa um louvor
No meio da romeirada
Parando nas Estações
E agradecendo com fé
Balbuciando orações
Cumprimentando Seu Zé
Jogando beijos no ar
Ela acena sem parar
Pra bicha, home e muié
O filme é encenado
Nas ruas de Juá City
O povo tá encantado
Com o tal enredo beat
O roteiro é a história
Da neta de Dona Glória
E filha de Idelzuíte
Trata-se duma promessa
Que Shirley Dayanna fez
Assim a cena começa
Em Dois Mil e Dezesseis
O Milagre Travesthriller
É dirigido por Muller
E fala de gravidez
Shirley está preocupada
Com a vida conjugal
Se sentindo inadequada
Etecétera e coisa e tal
Tudo que ela queria:
Era aumentar a famía,
Como faz todo casal
Pediu para sua anja
Senhora da Conceição
-Eis uma santa que manja
Do tema concepção!-
Mas nada lhe aconteceu
A menstruação desceu
E seu apelo foi vão
Então meio delirante
Shirley de vela na mão
No quarto teve um rompante
Qual uma alucinação
Entendeu que poderia
Conceber como Maria
Sob santa inspiração
Daí rogou ao Senhor
Que enviasse um sinal
Por meio dum protetor
Um ente angelical
Chamado de Gabriel
Gerente dalgum motel
Messenger neonatal
E não cessava de orar
Sempre com muito fervor
Prometendo jejuar
E dizimar com rigor
Mas uma voz estridente
Repetia, renitente:
Não me tente, por favor!
Ela argumentou então:
Eu também tenho direito!
Não fiz catecismo em vão!
Decorei todo o preceito!
Fui crismada, batizada!
Hoje sou mulher casada!
Qual é mesmo o meu defeito?
E a voz, peremptória,
Dizia: Assim não dá...
Você burlou a história
Pra me desmoralizar
Quem já viu um travesti
Pensar que pode parir
Para Eu abençoar?
Vendo que não conseguia
Convencer a Deus do Céu
Lhe ocorreu que poderia
Falar com um bacharel
Pra ele peticionar
Requerer, protocolar
Um write, vulgo créu!
Todavia, infelizmente
Mesmo por muito dinheiro
O doutor mui competente
Conhecido em Juazeiro
Disse que não poderia:
Pois não há cidadania
Para travesti fuleiro
Ela disse: mas Doutor
Seu prestígio pode tudo
Eu lhe pago o que for
Pois confio em seu canudo
Preciso de seu trabalho
Expert em quebra-galho
Me ajude que eu te ajudo
Realmente eu sou o tal
E não quero me gabar
Mas o seu caso é banal
E violação não há
Falta interesse de agir
E eu volto a repetir:
Não há chance de ganhar
Mas tudo que seu birô
Apresenta pro juiz
Ele apõe um ''sim senhor''
-Segundo seu aprendiz-
E quando há recompensa
Tudo quanto é Excelência
Dá o seu... e pede bis
Data vênia, ele disse-
Ab ovo, ipso facto
Erga omnes, sub-vice
Outrossim, pague o pato
Dura lex, sede lex
Isto eu li na Consulex
Se traduzir eu lhe mato!
Shirley diante do não
Em seu cross-fox saiu
Telefonou pra João
E rapidinho seguiu
Para a sede do Galosc
-Se sentindo muito lost-
Ali chegando insistiu:
Eu preciso ter um filho
Para me realizar
Já fui rainha do milho
E também miss Ceará
Já desfilei na fanfarra
Agora chega de farra
Eu quero é amamentar!
Preciso de tua ajuda
De tua compreensão
Por favor não me iluda
Diga logo sim ou não!
E Joãozinho extasiado
Com cara de assustado
Prostrado fez oração:
Minha Santa Lady Gaga!
Virgem Madonna, oh não!
Beyoncé, oh minha fada!
Não rogo por Deus em vão!
Shirley Dayanna, amada
Me tire dessa parada
Não me meta em confusão!
De repente se lembrou
Da velha Dona Da Guia:
Uma prima de seu avô
Parteira da cercania
Que no Mercado Central
Benze e vende enxoval
Vela, santo e agonia
Shirley disse: bate, bicha!
Rodando uma bolsa prata
E girando à largartixa
Mostrou as unhas de gata
Chegando em Dona Da Guia
Sorrindo disse: bom dia!
E a velha danou-lhe a lata
De uma queda foi ao chão!
Mostrando sua calcinha
Ensaiou um palavrão
Mas viu que não lhe convinha
Mordeu seu indicador
E entre dentes gritou:
Ai que ódio, mulherzinha!
Da Guia disse: o que é?
Bicha da cara de lia!
Tu pensa que é muié?
Credincruz, ave maria!
Ói as trêis noite de escuro!
Teu lugar é no monturo!
Vai timbora logo, avia!
Shirley pediu uma imagem
De Padim Ciço Romão:
Quero render homenagem
E pedir sua benção
Será que ele me entende?
E meu desejo atende?
Me dando um bucho, ou não?
A velha empalideceu
E suando frio caiu
Um homem disse: morreu!
Shirley Dayanna fugiu
Foi pra casa duma amiga
Feminista entendida
Que assim lhe advertiu:
Shirley, você tá pirada
Perdeu a noção de tudo
Deixe dessa palhaçada
Deus pra você está mudo
E o Padre Ciço Romão
Não lhe dará atenção
Tudo isso é absurdo!
Para que engravidar?
Nestes tempos pós-modernos!
Todas querem abortar!
Leia aqui nos meus cadernos!
Quando eu penso que vocês
São as radicais da vez...
Defendem mitos eternos
Já que quer ser genitora
Porque não faz adoção?
Hoje a lei é promissora
Basta uma petição...
Minha filha, se oriente
Seja mulher diferente
Deixe de esculhambação
Shirley disse: queridinha
É meu desejo e pronto!
Você já ta passadinha
Mas eu inda tô no ponto
Vê se me ajuda a viver
Chega de teretetê
Me deixe ler este conto!
Então Shirley arrancou
Um livro de uma estante
E a feminista ficou
Pálida naquela instante
Era um texto de magia
Carregado de heresia
Uma peça alucinante
As Bichas Madres de Aurora?
Não é possível, menina!
Eis a caixa de Pandora!
Isso muda minha sina!
Tenho que levar pra casa!
É hoje que eu crio asa,
Peito, bunda e vagina!
O livro é baseado
No Segredo das Raimundas
Um grupo organizado
De beatas moribundas
Que no século dezenove
Praticavam meia-nove
Dentro duma catatumba
Eram cinco travestis
Que viviam no sertão
E viraram colibris
Depois duma maldição
Pois com o poder da mente
Foram mães precocemente
Hoje são assombração
Raimundas se travestiam
Em noite de lua cheia
E pelas ruas saíam
Uivando como sereias
E dentro dum cemitério
Ali se dava o mistério
Que todo corpo incendeia
Fingiam-se de beatas
Para vestido usar
Mas, às vezes, de gravatas
Iam pra missa rezar
E depois da cerimônia
Perdiam toda a vergonha
E transavam sem parar
E para encher de cores
As vestes tradicionais
Elas chupavam as flores
Dos altares principais
Colorindo suas bocas
E ficando muito loucas
Para os grandes bacanais
Porém uma destas cenas
A população flagrou
E a dança da macarena
Que o grupo reinventou
Irritou a Dona Helena
Que sem ter dó e nem pena
Uma a uma matou
Mas na cauda de Bisonho
Elas deixaram um segredo
Que através de um sonho
Aprenderam muito cedo
Dizia: Pra ser feliz
Ouça o que o coração diz
E nunca mais tenha medo!
Sentada dentro do carro
Com olhos arregalados
Shirley fumou um cigarro
Apreciando o babado
Parecia onipotente
Criando em sua mente
Um insight arretado
Lendo fervorosamente
Logo tudo entendeu
O poder do inconsciente!
E todo seu apogeu
Viu que para engravidar
Bastava ela imaginar
E assim lhe ocorreu
Sorriu genuinamente
Para as deidades fiéis
Sentindo estranhamente
Da cabeça até os pés
Transformação corporal
- Algo sobrenatural! -
E assim contou até dez
Um: estou engravidada!
Dois: Isto é fenomenal!
Três: Me sinto iluminada!
Quatro: Hoje é natal!
Cinco: Viva a putaria!
Seis: Tô cheia de energia!
Sete: Benedito pau!
Oito: Tudo é permitido!
Nove: Eu quero voar!
Dez! Ouviu-se um estampido
E algo estranho no ar
Shirley estava flutuando
Sobre a cidade pairando
E a multidão a olhar
Assim se deu o milagre
Travesthriller sensual
E cachaça com vinagre
Foi a poção magical
Shirley Dayanna feliz
Foi à missa da matriz
Numa entrada triunfal
Desceu as ruas do centro
E o povo todo aplaudindo
Ela sentia por dentro
O menino se bulindo
Era sua apoteose
Nem lembrava da neurose
Que antes vinha sentindo
A notícia se espalhou
Como água na ladeira
Shirley mal engravidou
E o boato já na feira
Todo mundo interessado
No novo mito gerado
Nesta terra milagreira
Virou capa de jornal
Da Palmeirinha ao Sudão
Na mídia internacional
Rádio e televisão
Até o Barack Obama
Enviou um telegrama
Festejando a ocasião
O prefeito da cidade
Mandou congratulações
Mais de mil autoridades
Fizeram bajulações
Ouviu-se o bispo dizendo
Que o feito era tremendo
Digno de celebrações
A gravidez mais falada
Desta era milenar
Muita tese elaborada
Tentando tudo explicar
Cafuçu fazendo intriga
Falando mal da amiga
Mas querendo o seu lugar
A vovó Idelzuíte
Fofa, paba e orgulhosa
Curada da homofobite
Gritava cheia de prosa
Dizendo: é minha filha!
Eita bicha maravilha,
Santa, linda e corajosa!
A bisavó, Dona Glória
Beata só cem por cento
Espalhou logo a história
Que Shirley era anjo bento
E que sempre foi mulher
Por isso Deus é quem quer
Que ela tenha um rebento!
Sendo o fato destacado
Em nível internacional
Ninguém falou em pecado
Tudo era sensacional
O objetivo agora
Era contar a história
Com viés episcopal
Atribuíram o feito
Ao Patriarca Maior
Que se remexeu no leito
Onde voltamos ao pó
E sob o slogan 'Pra Frente':
Fez-se a marcha-penitente:
Shirley, você não tá só!
Com todo este alvoroço
De notícia alvissareira
Foi marcado um almoço
Pra traveca parideira
Onde a cúpula do poder
Deseja escolher
Um nome para a herdeira
Mas Shirley disse baixinho:
Não quero saber o sexo
Meu bebê tem meu carinho
Este será nosso nexo
Humano fundamental
Sem padrão inaugural
Pois todo ser é complexo!
Dentre os vários convidados
Seus amigos mais queridos
Todos muito emocionados
Falaram ao pé do ouvido:
Shirley, você arrasou!
Fez escola, inaugurou!
Tudo agora faz sentido!
Uma revista propôs
Que Shirley nua posasse
Mas sua família impôs
Que ela muito cobrasse
Mas ela assim decidiu:
Só poso pra Globo-news
Ou então para Prima Facie
Porém ficou combinado
Que um curta seria feito
Nada de muito parado
Tudo com muito efeito
Livre manifestação!
E muita demonstração
De bunda, perna e peito
Seria tudo filmado
Registrado com requinte
Tudo muito organizado
Nada de século XX
A cidade em polvorosa
Totalmente vaidosa
Da bichona ex-acinte
Diversos comerciantes
Quiseram patrocinar
Muitos eram confiantes
No filão que ia dar
Tinha até cordelista
Querendo ter uma pista
Do filme para narrar
Foi uma equipe tremenda
Pra trabalhar no local
Pois para narrar a lenda
Só mesmo profissional
Designer-maquiador
Roteirista e diretor
Tudo homossexual
Rosa Barros fez questão
Enquanto cinegrafista
De antes da gravação
Tentar fazer uma lista
De bicha, traveca e bofe
Para um belo making of
Ou tape alternativista
Pensava num musical
Em estilo procissão
Beat e banda cabaçal
Numa perfeita fusão
Bendito e música pop
Dancing-gay pra dar ibope
E muita vela na mão
Entre os artistas cotados
Alguns muito especiais
Todos muito devotados
Às temáticas marginais:
Jânio, Mano e André
Mauro, Sílvio e Dedé
Joaquina e outras mais
Até que chegou o dia
Da primeira encenação
Em Juá só alegria
Muita cor e emoção
O set foi preparado
Todo mundo maquiado
Câmera, luz e ação:
De braços dados com Eike
-Seu Reinaldo Gianecchine-
Ela caprichou no make
Para o evento sublime
Poderosa e retumbante
Estrela, mãe e amante
Adentrou a limousine
As fofoqueiras do mundo
Todas presentes no ato
Muitas querendo, no fundo
Protagonizar o fato
Procurando um defeito
Uma disse desse jeito:
Shirley tem cara de rato!
Uma pessoa gritou:
Silêncio, maleducados!
Ali passava um andor
E caminhões enfeitados
E na banca de cordel
Vídeo e cd a granel
Em rosários pendurados
Assim é o Juazeiro
Do Padim Ciço Romão
Onde tem muito romeiro
Muita fé e oração
Bodega pra todo lado
E véio amancebado
Que chora e pede perdão
É dia 20 do mês
São seis horas da manhã
Com uma saia xadrez
E uma blusa de lã
Na calçada do Socorro
Ela grita: eu mato e corro!
É Zefa doida, anciã
Agarrada numa rosa
Com um envelope na mão
Um tanto quanto nervosa
Repetindo uma oração
Está uma rapariga
Imune a qualquer intriga
Pedindo sua benção
Gente que só formigueiro
Vendo a cidade crescer
Circula muito dinheiro
-Pois tudo é pra vender-
Um misto de drama e fé
Na terra onde Shirley quer
Vê seu herdeiro nascer
Travesthriller objetiva
Mostrar a diversidade
E também relativiza
Toda impossibilidade
Põe a imaginação
Pra cair em tentação
E colorir a cidade
O filme-cordel é isto:
Absurdo teatrado!
Escrito pra ser malvisto
Quiçá mal interpretado
A nossa proposta é esta:
-Ambiciosa e modesta-
Subverter o pecado!
Nossa cena derradeira
Mostra um clip do lugar:
Que vista mais altaneira!
Vale a pena visitar!
Há um bar muito vistoso,
O História de Trancoso
Nos encontramos por lá!
Aqui termino meu texto
Não sem antes dedicar
A Orlando, meu pretexto,
Que me propôs versejar
Sobre uma travesti
Que vive, ama e sorri
E nos ensina a sonhar.
Autora: Salete Maria
Post Script:
As fontes bibliográficas?
É simples, amigo meu...
São as histórias fantásticas
Que a vida me ofereceu
De bêbo, puta e doutor
Beato e embolador
Viado, índio e ateu!
Terra, 10/06/2010
A HISTÓRIA DA TRAVESTI QUE
(COM FÉ) ENGRAVIDOU
La libertad de la fantasía no es ninguna huida a
la irrealidad; es creación y osadía (Eugène Ionesco)
Subindo a Serra do Horto
Ao som do 'baby pirei'
Com seu olhar absorto
Curtindo seu happy day
Ao lado da comitiva
Desfila ela, a diva
Orgulho da causa gay
De baby-look brilhosa
E mini-saia rendada
Com sua bota estilosa
E a cabeleira dourada
Beijando o seu amor
Ela entoa um louvor
No meio da romeirada
Parando nas Estações
E agradecendo com fé
Balbuciando orações
Cumprimentando Seu Zé
Jogando beijos no ar
Ela acena sem parar
Pra bicha, home e muié
O filme é encenado
Nas ruas de Juá City
O povo tá encantado
Com o tal enredo beat
O roteiro é a história
Da neta de Dona Glória
E filha de Idelzuíte
Trata-se duma promessa
Que Shirley Dayanna fez
Assim a cena começa
Em Dois Mil e Dezesseis
O Milagre Travesthriller
É dirigido por Muller
E fala de gravidez
Shirley está preocupada
Com a vida conjugal
Se sentindo inadequada
Etecétera e coisa e tal
Tudo que ela queria:
Era aumentar a famía,
Como faz todo casal
Pediu para sua anja
Senhora da Conceição
-Eis uma santa que manja
Do tema concepção!-
Mas nada lhe aconteceu
A menstruação desceu
E seu apelo foi vão
Então meio delirante
Shirley de vela na mão
No quarto teve um rompante
Qual uma alucinação
Entendeu que poderia
Conceber como Maria
Sob santa inspiração
Daí rogou ao Senhor
Que enviasse um sinal
Por meio dum protetor
Um ente angelical
Chamado de Gabriel
Gerente dalgum motel
Messenger neonatal
E não cessava de orar
Sempre com muito fervor
Prometendo jejuar
E dizimar com rigor
Mas uma voz estridente
Repetia, renitente:
Não me tente, por favor!
Ela argumentou então:
Eu também tenho direito!
Não fiz catecismo em vão!
Decorei todo o preceito!
Fui crismada, batizada!
Hoje sou mulher casada!
Qual é mesmo o meu defeito?
E a voz, peremptória,
Dizia: Assim não dá...
Você burlou a história
Pra me desmoralizar
Quem já viu um travesti
Pensar que pode parir
Para Eu abençoar?
Vendo que não conseguia
Convencer a Deus do Céu
Lhe ocorreu que poderia
Falar com um bacharel
Pra ele peticionar
Requerer, protocolar
Um write, vulgo créu!
Todavia, infelizmente
Mesmo por muito dinheiro
O doutor mui competente
Conhecido em Juazeiro
Disse que não poderia:
Pois não há cidadania
Para travesti fuleiro
Ela disse: mas Doutor
Seu prestígio pode tudo
Eu lhe pago o que for
Pois confio em seu canudo
Preciso de seu trabalho
Expert em quebra-galho
Me ajude que eu te ajudo
Realmente eu sou o tal
E não quero me gabar
Mas o seu caso é banal
E violação não há
Falta interesse de agir
E eu volto a repetir:
Não há chance de ganhar
Mas tudo que seu birô
Apresenta pro juiz
Ele apõe um ''sim senhor''
-Segundo seu aprendiz-
E quando há recompensa
Tudo quanto é Excelência
Dá o seu... e pede bis
Data vênia, ele disse-
Ab ovo, ipso facto
Erga omnes, sub-vice
Outrossim, pague o pato
Dura lex, sede lex
Isto eu li na Consulex
Se traduzir eu lhe mato!
Shirley diante do não
Em seu cross-fox saiu
Telefonou pra João
E rapidinho seguiu
Para a sede do Galosc
-Se sentindo muito lost-
Ali chegando insistiu:
Eu preciso ter um filho
Para me realizar
Já fui rainha do milho
E também miss Ceará
Já desfilei na fanfarra
Agora chega de farra
Eu quero é amamentar!
Preciso de tua ajuda
De tua compreensão
Por favor não me iluda
Diga logo sim ou não!
E Joãozinho extasiado
Com cara de assustado
Prostrado fez oração:
Minha Santa Lady Gaga!
Virgem Madonna, oh não!
Beyoncé, oh minha fada!
Não rogo por Deus em vão!
Shirley Dayanna, amada
Me tire dessa parada
Não me meta em confusão!
De repente se lembrou
Da velha Dona Da Guia:
Uma prima de seu avô
Parteira da cercania
Que no Mercado Central
Benze e vende enxoval
Vela, santo e agonia
Shirley disse: bate, bicha!
Rodando uma bolsa prata
E girando à largartixa
Mostrou as unhas de gata
Chegando em Dona Da Guia
Sorrindo disse: bom dia!
E a velha danou-lhe a lata
De uma queda foi ao chão!
Mostrando sua calcinha
Ensaiou um palavrão
Mas viu que não lhe convinha
Mordeu seu indicador
E entre dentes gritou:
Ai que ódio, mulherzinha!
Da Guia disse: o que é?
Bicha da cara de lia!
Tu pensa que é muié?
Credincruz, ave maria!
Ói as trêis noite de escuro!
Teu lugar é no monturo!
Vai timbora logo, avia!
Shirley pediu uma imagem
De Padim Ciço Romão:
Quero render homenagem
E pedir sua benção
Será que ele me entende?
E meu desejo atende?
Me dando um bucho, ou não?
A velha empalideceu
E suando frio caiu
Um homem disse: morreu!
Shirley Dayanna fugiu
Foi pra casa duma amiga
Feminista entendida
Que assim lhe advertiu:
Shirley, você tá pirada
Perdeu a noção de tudo
Deixe dessa palhaçada
Deus pra você está mudo
E o Padre Ciço Romão
Não lhe dará atenção
Tudo isso é absurdo!
Para que engravidar?
Nestes tempos pós-modernos!
Todas querem abortar!
Leia aqui nos meus cadernos!
Quando eu penso que vocês
São as radicais da vez...
Defendem mitos eternos
Já que quer ser genitora
Porque não faz adoção?
Hoje a lei é promissora
Basta uma petição...
Minha filha, se oriente
Seja mulher diferente
Deixe de esculhambação
Shirley disse: queridinha
É meu desejo e pronto!
Você já ta passadinha
Mas eu inda tô no ponto
Vê se me ajuda a viver
Chega de teretetê
Me deixe ler este conto!
Então Shirley arrancou
Um livro de uma estante
E a feminista ficou
Pálida naquela instante
Era um texto de magia
Carregado de heresia
Uma peça alucinante
As Bichas Madres de Aurora?
Não é possível, menina!
Eis a caixa de Pandora!
Isso muda minha sina!
Tenho que levar pra casa!
É hoje que eu crio asa,
Peito, bunda e vagina!
O livro é baseado
No Segredo das Raimundas
Um grupo organizado
De beatas moribundas
Que no século dezenove
Praticavam meia-nove
Dentro duma catatumba
Eram cinco travestis
Que viviam no sertão
E viraram colibris
Depois duma maldição
Pois com o poder da mente
Foram mães precocemente
Hoje são assombração
Raimundas se travestiam
Em noite de lua cheia
E pelas ruas saíam
Uivando como sereias
E dentro dum cemitério
Ali se dava o mistério
Que todo corpo incendeia
Fingiam-se de beatas
Para vestido usar
Mas, às vezes, de gravatas
Iam pra missa rezar
E depois da cerimônia
Perdiam toda a vergonha
E transavam sem parar
E para encher de cores
As vestes tradicionais
Elas chupavam as flores
Dos altares principais
Colorindo suas bocas
E ficando muito loucas
Para os grandes bacanais
Porém uma destas cenas
A população flagrou
E a dança da macarena
Que o grupo reinventou
Irritou a Dona Helena
Que sem ter dó e nem pena
Uma a uma matou
Mas na cauda de Bisonho
Elas deixaram um segredo
Que através de um sonho
Aprenderam muito cedo
Dizia: Pra ser feliz
Ouça o que o coração diz
E nunca mais tenha medo!
Sentada dentro do carro
Com olhos arregalados
Shirley fumou um cigarro
Apreciando o babado
Parecia onipotente
Criando em sua mente
Um insight arretado
Lendo fervorosamente
Logo tudo entendeu
O poder do inconsciente!
E todo seu apogeu
Viu que para engravidar
Bastava ela imaginar
E assim lhe ocorreu
Sorriu genuinamente
Para as deidades fiéis
Sentindo estranhamente
Da cabeça até os pés
Transformação corporal
- Algo sobrenatural! -
E assim contou até dez
Um: estou engravidada!
Dois: Isto é fenomenal!
Três: Me sinto iluminada!
Quatro: Hoje é natal!
Cinco: Viva a putaria!
Seis: Tô cheia de energia!
Sete: Benedito pau!
Oito: Tudo é permitido!
Nove: Eu quero voar!
Dez! Ouviu-se um estampido
E algo estranho no ar
Shirley estava flutuando
Sobre a cidade pairando
E a multidão a olhar
Assim se deu o milagre
Travesthriller sensual
E cachaça com vinagre
Foi a poção magical
Shirley Dayanna feliz
Foi à missa da matriz
Numa entrada triunfal
Desceu as ruas do centro
E o povo todo aplaudindo
Ela sentia por dentro
O menino se bulindo
Era sua apoteose
Nem lembrava da neurose
Que antes vinha sentindo
A notícia se espalhou
Como água na ladeira
Shirley mal engravidou
E o boato já na feira
Todo mundo interessado
No novo mito gerado
Nesta terra milagreira
Virou capa de jornal
Da Palmeirinha ao Sudão
Na mídia internacional
Rádio e televisão
Até o Barack Obama
Enviou um telegrama
Festejando a ocasião
O prefeito da cidade
Mandou congratulações
Mais de mil autoridades
Fizeram bajulações
Ouviu-se o bispo dizendo
Que o feito era tremendo
Digno de celebrações
A gravidez mais falada
Desta era milenar
Muita tese elaborada
Tentando tudo explicar
Cafuçu fazendo intriga
Falando mal da amiga
Mas querendo o seu lugar
A vovó Idelzuíte
Fofa, paba e orgulhosa
Curada da homofobite
Gritava cheia de prosa
Dizendo: é minha filha!
Eita bicha maravilha,
Santa, linda e corajosa!
A bisavó, Dona Glória
Beata só cem por cento
Espalhou logo a história
Que Shirley era anjo bento
E que sempre foi mulher
Por isso Deus é quem quer
Que ela tenha um rebento!
Sendo o fato destacado
Em nível internacional
Ninguém falou em pecado
Tudo era sensacional
O objetivo agora
Era contar a história
Com viés episcopal
Atribuíram o feito
Ao Patriarca Maior
Que se remexeu no leito
Onde voltamos ao pó
E sob o slogan 'Pra Frente':
Fez-se a marcha-penitente:
Shirley, você não tá só!
Com todo este alvoroço
De notícia alvissareira
Foi marcado um almoço
Pra traveca parideira
Onde a cúpula do poder
Deseja escolher
Um nome para a herdeira
Mas Shirley disse baixinho:
Não quero saber o sexo
Meu bebê tem meu carinho
Este será nosso nexo
Humano fundamental
Sem padrão inaugural
Pois todo ser é complexo!
Dentre os vários convidados
Seus amigos mais queridos
Todos muito emocionados
Falaram ao pé do ouvido:
Shirley, você arrasou!
Fez escola, inaugurou!
Tudo agora faz sentido!
Uma revista propôs
Que Shirley nua posasse
Mas sua família impôs
Que ela muito cobrasse
Mas ela assim decidiu:
Só poso pra Globo-news
Ou então para Prima Facie
Porém ficou combinado
Que um curta seria feito
Nada de muito parado
Tudo com muito efeito
Livre manifestação!
E muita demonstração
De bunda, perna e peito
Seria tudo filmado
Registrado com requinte
Tudo muito organizado
Nada de século XX
A cidade em polvorosa
Totalmente vaidosa
Da bichona ex-acinte
Diversos comerciantes
Quiseram patrocinar
Muitos eram confiantes
No filão que ia dar
Tinha até cordelista
Querendo ter uma pista
Do filme para narrar
Foi uma equipe tremenda
Pra trabalhar no local
Pois para narrar a lenda
Só mesmo profissional
Designer-maquiador
Roteirista e diretor
Tudo homossexual
Rosa Barros fez questão
Enquanto cinegrafista
De antes da gravação
Tentar fazer uma lista
De bicha, traveca e bofe
Para um belo making of
Ou tape alternativista
Pensava num musical
Em estilo procissão
Beat e banda cabaçal
Numa perfeita fusão
Bendito e música pop
Dancing-gay pra dar ibope
E muita vela na mão
Entre os artistas cotados
Alguns muito especiais
Todos muito devotados
Às temáticas marginais:
Jânio, Mano e André
Mauro, Sílvio e Dedé
Joaquina e outras mais
Até que chegou o dia
Da primeira encenação
Em Juá só alegria
Muita cor e emoção
O set foi preparado
Todo mundo maquiado
Câmera, luz e ação:
De braços dados com Eike
-Seu Reinaldo Gianecchine-
Ela caprichou no make
Para o evento sublime
Poderosa e retumbante
Estrela, mãe e amante
Adentrou a limousine
As fofoqueiras do mundo
Todas presentes no ato
Muitas querendo, no fundo
Protagonizar o fato
Procurando um defeito
Uma disse desse jeito:
Shirley tem cara de rato!
Uma pessoa gritou:
Silêncio, maleducados!
Ali passava um andor
E caminhões enfeitados
E na banca de cordel
Vídeo e cd a granel
Em rosários pendurados
Assim é o Juazeiro
Do Padim Ciço Romão
Onde tem muito romeiro
Muita fé e oração
Bodega pra todo lado
E véio amancebado
Que chora e pede perdão
É dia 20 do mês
São seis horas da manhã
Com uma saia xadrez
E uma blusa de lã
Na calçada do Socorro
Ela grita: eu mato e corro!
É Zefa doida, anciã
Agarrada numa rosa
Com um envelope na mão
Um tanto quanto nervosa
Repetindo uma oração
Está uma rapariga
Imune a qualquer intriga
Pedindo sua benção
Gente que só formigueiro
Vendo a cidade crescer
Circula muito dinheiro
-Pois tudo é pra vender-
Um misto de drama e fé
Na terra onde Shirley quer
Vê seu herdeiro nascer
Travesthriller objetiva
Mostrar a diversidade
E também relativiza
Toda impossibilidade
Põe a imaginação
Pra cair em tentação
E colorir a cidade
O filme-cordel é isto:
Absurdo teatrado!
Escrito pra ser malvisto
Quiçá mal interpretado
A nossa proposta é esta:
-Ambiciosa e modesta-
Subverter o pecado!
Nossa cena derradeira
Mostra um clip do lugar:
Que vista mais altaneira!
Vale a pena visitar!
Há um bar muito vistoso,
O História de Trancoso
Nos encontramos por lá!
Aqui termino meu texto
Não sem antes dedicar
A Orlando, meu pretexto,
Que me propôs versejar
Sobre uma travesti
Que vive, ama e sorri
E nos ensina a sonhar.
Autora: Salete Maria
Post Script:
As fontes bibliográficas?
É simples, amigo meu...
São as histórias fantásticas
Que a vida me ofereceu
De bêbo, puta e doutor
Beato e embolador
Viado, índio e ateu!
Terra, 10/06/2010
Muito bom tudo por aqui. Sou interesado por literatura e Cordel.Sou de São Bento do Una,Estado de Pernambuco.Moro em Goiânia há muito tempo e estou preparando uns dois livros para serem publicados,um em 2010 ainda e outro em 2011. ALG-Goiânia,Go.
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