
Dois velhos filosofavam
Acerca de suas vidas
Sobre tudo comentavam
Amores, dores, feridas
Ela falava baixinho
Ele escutava sozinho
Aquelas frases sofridas:
É sempre muito cruel
O mundo em que a gente vive
Pois o que está no papel
Na prática não sobrevive
O respeito ao idoso
É um assunto jocoso
Demagogo, inclusive
Você tem toda razão
- disse o velho à senhora-
A tal discriminação
É a atitude 'da hora'
A nossa categoria
Jamais ganhou alforria
E a humanidade ignora
Ser velho neste planeta
É como não valer mais
É como uma camiseta
Rasgada à frente e atrás
É viver na solidão
No meio da multidão
Não sendo visto jamais
É como passar batido
É não ser observado
É como ser esquecido
Pelo ente mais amado
É como não existir
É comer e não sentir
O sabor de um guisado
É mesmo muito ruim
O que sentimos agora
Mas nem sempre foi assim
Ao longo de toda História
O velho tinha valor
Sapiência e amor
Status, luzes e glória
Era muito respeitado
Por ser mais experiente
Bastante considerado
Por ser de tudo ciente
Mas perdeu sua importância
Quando surgiu a ganância
Da parte do mais valente
Quando a força se impôs
E os bens materiais
Quando ficou pra depois
O amor e tudo mais
Quando enfim o capital
Deu o passo inicial
O velho não valeu mais
Quando o exército pediu
O vigor da juventude
Quando a indústria exigiu
Braço forte e saúde
Quando o Estado percebeu
O “custo” que o velho deu
Disse: é preciso que mude!
Que nada de experiente!
O velho só atrapalha
Esclerosado e demente
É como uma cangalha
Vamos ter de carregar
Levando a todo lugar
Este resto de metralha
Então o velho deixou
De ser alguém venerado
E bem depressa passou
A ser mui enxovalhado
De respeitada, a velhice
Passou a ser rabugice
E o velho foi humilhado
A tal ancianidade
Foi vista então com desdém
Quem fizesse mais idade
Não seria mais ninguém
Chamar-se-ia antiquado
Obsoleto, quadrado
Arcaico, matusalém
Alguns os chamam trambolho
Fardo, inútil, atrasado
Não põem as barbas de molho
Vivem um tempo parado
Acham que o hoje é eterno
Se julgam sempre moderno
Amanhã serão passado
O culto à mocidade
Que consome, que trabalha
Aos que têm pouca idade
A quem, em tese, não falha
Aos que servem o capital
É o jogo do vil metal
Dessa corja de canalha
O que é velho é remoto
É negativo, é ruim
É qual um álbum de foto
É a ante-sala do fim
Faz parte da neo-cultura
É a porra da sepultura
Por que tem que ser assim?
É certo que é relativo
Nem tudo que é velho é bom
Mas eu falo do ser vivo
E não da caixa de som
O homem que envelheceu
Aprendeu, amou, viveu
Plantou, colheu, deu o tom
A vida não é constante
Tem fases, muda, evolui
A idade é um instante
O tempo ninguém possui
A maturidade vem
Para o mal ou para o bem
Quem quiser que continue!
Ambos foram professores
Cultos, intelectuais
Ela doutora Dolores
Ele, mestre Ernesto Paz
Uma vez aposentados
Ficaram enclausurados
Não souberam viver mais
Naquele dia a idéia
De voltar a pesquisar
Pra entender a epopéia
Do homem ao declinar
Cogitou de teoria
Armou-se de energia
Pr'uma tese formular
Decidiu sair à rua
E entrevistar a massa
Foi uma tática sua
Sentar-se ali na praça
A inquirir quem passava
Sobre o tema que versava
Trabalhava ele de graça
Nesta hora então passou
Um outro casal longevo
Ernesto a eles parou
E disse-lhes: eu escrevo
Um livro sobre o idoso
E quero saber do povo
Se continuá-lo devo
Quero provar que o homem
Não suporta envelhecer
A mal, por favor, não tomem
Este meu (pré) parecer
Mas é que tudo conheço
E respeito então mereço
Pelo que vou escrever
De vocês quero um conceito
Sobre esta condição
Não precisa ser perfeito
Pois vejo limitação
Eu só vou aproveitar
Aquilo que interessar
À minha atual visão
O varão disse: colega!
O tema é muito atual
Envelhecer é uma trégua
Que a gente dá, afinal
Faz parte de um processo
Não sei ao certo, confesso
Se é recomeço ou final
Disse a velhinha passante:
Veja que maravilhoso
Perguntas neste instante
Se meu guarda-chuva é novo?
Como poderei comprar
Se o que recebo mal dá
Pra comer arroz com ovo?
Um outro entrevistado
De meia-idade falou:
Estou muito apressado
Em nada ajudo o senhor
O tema não me interessa
Tô vexado, tô com pressa
Vá consultar meu avô
Uma moça que passava
Disse: a velhice é um saco!
Um jovem que estacionava
Gritou: é o mó barato!
Os velho não vêem nada
A gente rouba a mesada
Eles juram: foi um rato!
Uma criança inocente
Falou: meu avô é lento
Mas ele me dá presente
Quando recebe o “aposento”
Uma madame vulgar:
“Eu sofro só de pensar
Ficar velho é um tormento”
Uma senhora enxuta
Benzeu-se e respondeu:
“Eu enfrento uma luta
Que minha mãe já sofreu
Escondo uma ruga aqui
Um pé-de-galinha ali
Já não reconheço eu”
Mais adiante um rapaz
Disse: eu conheço alguém
O senhor não é capaz
De dizer que anos tem
É uma velha humorada,
Que vive a dar risada
Gozada como ninguém
O mestre se interessou
Por encontrar tal pessoa
Ele a entrevistou
E viu que não era à toa
O jovem tinha razão
Era cheia de emoção
Contava proas e loas
Disse ela sem sermões:
Velha é a serra, a estrada
Envelhecer traz questões
Com mil respostas erradas
Se já não temos vigor
Transbordamos em amor
Mas já não somos amadas
A velhice põe em cheque
Algumas convicções
Já não somos mais moleques
Já não temos ilusões
O presente é o futuro
Somos o fruto maduro
Ao cabo das estações
Costumo ironizar
Com quem caçoa de mim
Gosto de me maquiar
Desde moça sou assim
Meu cabelo agora é branco
Mas não desço do tamanco
Uso roupas de cetim
Eu sei que há diferenças
E há discriminação
Sei que muita gente pensa
Que o velho não tem visão
Eu mesmo cega dum olho
Costuro, cato piolho
Assisto televisão
Tá certo, nada é igual
Uns estão na solidão
Em casa ou num hospital
Em asilo ou em pensão
Mas se a gente não sorrir
Não namorar, não sair
Piora a situação
Se o velho rico recebe
Tratamento especial
E o velho pobre, da plebe
Mal toma um fino mingau
Não vejo o governo agir
Não tenho porque mentir
Vida boa é a de Lalau
Nessa ocasião chegou
Um velho muito janota
Envolto num cobertor
Calçando um par de botas
Olhou o homem e falou:
Eu vou contar pro senhor
Por que fui Rei em Pelotas
Costumo matar charadas
Como serei atrasado?
Se tenho idade avançada
Só posso viver avançado
O povo é meio bilé
Pensa que o velho é
Um doido, um abirobado
Não sou triste como tu
Que é jovem só por disfarce
Se tu tens prega no cu
Também as tenho, na face
Digo que sou sazonado
Macróbio, experimentado
Representante da classe!
O professor encerrou
A gravação e partiu
Chegou em casa e pensou
Em tudo o quanto ouviu
Conclui: que coisa louca!
Velhice é o que sai da boca
Do jovem-mundo-senil
É menos limitação
E mais visão distorcida
É menos saturação
E mais idéia vencida
Ser velho é um conceito?
Não sê-lo é preconceito?
Não sei de nada da vida!
A velhice é o futuro
- o mundo envelheceu-
Quem fez o sexo seguro
Um filho não concebeu
Em breve o mundo será
Mil velhos à beira-mar
Somos ele, tu e eu
Nem todo velho é ranzinza
Nem todo outono é tristeza
Nem toda nuance é cinza
Nem toda falta é pobreza
Nem tudo que é novo é zero
Nem tudo que tenho quero
Nem toda tese é certeza
E para finalizar
A autora faz sua fé
“Preciso homenagear
Uma ‘antiga’ mulher
É minha avó a danada
90 anos de estrada
Salve Maria José!”