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quinta-feira, 8 de julho de 2010

O CASO 'ELIZA SAMUDIO' E O MACHISMO TOTAL


O caso Eliza Samudio
Que tem chocado o Brasil
Emerge como prelúdio
De um grande desafio:
Exortar nossa Justiça
Pra deixar de ser omissa
Ante o machismo tão vil!

Trata-se de um momento
De grande reflexão
Pois não basta só lamento
Ou alguma oração
É hora de provocar
Propondo um outro olhar
Sobre processo e ação

Saiu na televisão
Rádio, internet e jornal
Notícia em primeira mão
Toda manchete é igual:
Ex-amante de goleiro
(Aquele cheio de dinheiro!)
Sumiu sem deixar sinal

Muita especulação
- discurso de autoridade-
Uns dizem que é armação
Outros dizem que é verdade
Polícia e delegacia
Justiça e promotoria:
Fogueira de vaidades!

Mei-mundo de advogados
Investigação global
Cada um no seu quadrado
Falando em todo canal
Subjacente a tudo
Um peixe muito graúdo:
Androcentrismo total!

A mídia fala em Bruno
Eliza e gravidez
Flamengo, orgia e fumo
-esta é a bola da vez!-
Tem muito 'especialista'
Em busca de alguma pista
Pra ser o herói do mês

E a história se repetindo
Mudando apenas o nome
Outra mulher sucumbindo
Sob ameaça dum homem
Uma vida abreviada
Cuja morte anunciada
A estatística consome

Assim é a violência
Lançada sobre a mulher
Ela pede providência
E cara faz o que quer
Mas a Justiça, que é lerda,
Machista, 'fazendo merda'
Vem com papo de mané

E oito meses depois
Da 'denúncia' inicial
Que é o feijão com arroz
Do distinto tribunal
Nadica de nada existe
Mas autoridade insiste
Que isto, sim, é normal:

“A culpa é do Instituto
Que não mandou o exame”
- isto soa como insulto
e daqueles mais infame-
Não era caso de urgência?
-tenha santa paciência!-
Para que serve um ditame?

A moça buscou amparo
Na Justiça do país
Agiu correto, é claro
E esperou do juiz
O tal reconhecimento
Sobre o pai do seu rebento
Tendo a vida por um triz

Também fez comunicado
Ao campo policial
Dizendo que o namorado
Praticou crimes e tal
Buscou as vias legais
Enfrentou feras reais
Terá sido este o seu mal?

Mesmo com a delegacia
Dita especializada
E com toda a apologia
De uma Lei avançada
Faltou ter a ruptura
Com aquela velha cultura
De que a mulher é culpada

E o cumprimento legal
No caso, muito importante
Seria mais um arsenal
Para enfrentar o gigante
Mudar a mentalidade
De nossas autoridades
É fator preponderante

E para que isto ocorra
Entre outra alternativa
Antes que mais uma morra
E o caso fique à deriva
É preciso compreender
Que Justiça é pra fazer
Enquanto a mulher tá viva!

Sei que nada justifica
Que haja tanta demora
E enquanto o caso complica
A vítima 'já foi embora'
Sem medida protetiva!
Sequer prisão preventiva!
Quanta inoperância aflora!

Se o exame era necessário
À elucidação do crime
O Estado-perdulário
Neste campo fez regime
Ficando no empurra empurra
No velho: ''mulher é burra,
e joga no outro time”

Todo crime tem problemas
De toda diversidade
Assim como há esquemas
Também há dificuldades
Mas pra mim é evidente
Que o machismo presente
Premia a impunidade

Machismo compartilhado
Por gente de toda cor
Do goleiro ao empregado
Do primo ao executor
Autoridades também
Implicitamente têm
Um machismo inspirador

Cada 'doutor' se expressa
Centrado no garanhão
É o mote da conversa:
Fama, grana e traição
Ao se referir a ela
Falam da menina bela
Que fez filme de tesão

Falta a compreensão
Da questão relacional
Gênero, classe, profissão
Cor e status social
O processo é narrativa
Que emerge da saliva
Falocêntrica-legal

E ainda que alguns digam
“Oh, Eliza, coitadinha”
E suas doutrinas sigam
Desvendando pegadinhas
A escola dogmática
Do direito-matemática
Perpetua ladainhas

Processo judicial
Só serve para punir?
Havia tanto sinal...
Não dava pra prevenir?
E a tal ação civil?
Alimentos deferiu?
Para o bebê consumir?

É um momento de dor
Para a família dos dois
O caso é multifator
Não basta dar nome aos bois
A lógica policial
Cartesiana e formal
Festeja tudo depois

Por isso se faz urgente
Conjugar gênero e direito
Pois um trabalho decente
Que surta algum efeito
Não se limita a julgar
Mas também a estudar
O cerne do preconceito

Homens que matam mulheres
Em relações de poder
Isto tem se dado em série
Mas é preciso entender
Que subjaz ao evento
Um histórico comportamento
Que vai construindo o ser

A nossa sociedade
Apesar da evolução
Reproduz iniquidade
E também muita opressão
Homem que bate em mulher
- E “ninguém mete a colher” -
Sempre foi uma 'lição'

Aprendida por goleiros
Delegados, professores
Motoristas, marceneiros
Pedreiros e promotores
Garçons e malabaristas
Médicos e taxistas
Juízes e adestradores

Por isto em nossos dias
De conquistas sociais
De novas filosofias
Direitos especiais
Não podemos aceitar
Justiça só pra apurar
Crimes tão excepcionais

Que a Justiça também
Sirva para (se) educar
Chega deste nhém-nhém-nhém
Deste eterno blá-blá-blá
A Lei Maria da Penha
Existe pra que não tenha
Tanta morte a lamentar!!!
* * *
* *
*
Créditos da Imagem, clique AQUI

sexta-feira, 2 de julho de 2010

O MILAGRE TRAVESTHRILLER:
A HISTÓRIA DA TRAVESTI QUE
(COM FÉ) ENGRAVIDOU

La libertad de la fantasía no es ninguna huida a
la irrealidad; es creación y osadía (Eugène Ionesco)



Subindo a Serra do Horto
Ao som do 'baby pirei'
Com seu olhar absorto
Curtindo seu happy day
Ao lado da comitiva
Desfila ela, a diva
Orgulho da causa gay

De baby-look brilhosa
E mini-saia rendada
Com sua bota estilosa
E a cabeleira dourada
Beijando o seu amor
Ela entoa um louvor
No meio da romeirada

Parando nas Estações
E agradecendo com fé
Balbuciando orações
Cumprimentando Seu Zé
Jogando beijos no ar
Ela acena sem parar
Pra bicha, home e muié

O filme é encenado
Nas ruas de Juá City
O povo tá encantado
Com o tal enredo beat
O roteiro é a história
Da neta de Dona Glória
E filha de Idelzuíte

Trata-se duma promessa
Que Shirley Dayanna fez
Assim a cena começa
Em Dois Mil e Dezesseis
O Milagre Travesthriller
É dirigido por Muller
E fala de gravidez

Shirley está preocupada
Com a vida conjugal
Se sentindo inadequada
Etecétera e coisa e tal
Tudo que ela queria:
Era aumentar a famía,
Como faz todo casal

Pediu para sua anja
Senhora da Conceição
-Eis uma santa que manja
Do tema concepção!-
Mas nada lhe aconteceu
A menstruação desceu
E seu apelo foi vão

Então meio delirante
Shirley de vela na mão
No quarto teve um rompante
Qual uma alucinação
Entendeu que poderia
Conceber como Maria
Sob santa inspiração

Daí rogou ao Senhor
Que enviasse um sinal
Por meio dum protetor
Um ente angelical
Chamado de Gabriel
Gerente dalgum motel
Messenger neonatal

E não cessava de orar
Sempre com muito fervor
Prometendo jejuar
E dizimar com rigor
Mas uma voz estridente
Repetia, renitente:
Não me tente, por favor!

Ela argumentou então:
Eu também tenho direito!
Não fiz catecismo em vão!
Decorei todo o preceito!
Fui crismada, batizada!
Hoje sou mulher casada!
Qual é mesmo o meu defeito?

E a voz, peremptória,
Dizia: Assim não dá...
Você burlou a história
Pra me desmoralizar
Quem já viu um travesti
Pensar que pode parir
Para Eu abençoar?

Vendo que não conseguia
Convencer a Deus do Céu
Lhe ocorreu que poderia
Falar com um bacharel
Pra ele peticionar
Requerer, protocolar
Um write, vulgo créu!

Todavia, infelizmente
Mesmo por muito dinheiro
O doutor mui competente
Conhecido em Juazeiro
Disse que não poderia:
Pois não há cidadania
Para travesti fuleiro

Ela disse: mas Doutor
Seu prestígio pode tudo
Eu lhe pago o que for
Pois confio em seu canudo
Preciso de seu trabalho
Expert em quebra-galho
Me ajude que eu te ajudo

Realmente eu sou o tal
E não quero me gabar
Mas o seu caso é banal
E violação não há
Falta interesse de agir
E eu volto a repetir:
Não há chance de ganhar

Mas tudo que seu birô
Apresenta pro juiz
Ele apõe um ''sim senhor''
-Segundo seu aprendiz-
E quando há recompensa
Tudo quanto é Excelência
Dá o seu... e pede bis

Data vênia, ele disse-
Ab ovo, ipso facto
Erga omnes, sub-vice
Outrossim, pague o pato
Dura lex, sede lex
Isto eu li na Consulex
Se traduzir eu lhe mato!

Shirley diante do não
Em seu cross-fox saiu
Telefonou pra João
E rapidinho seguiu
Para a sede do Galosc
-Se sentindo muito lost-
Ali chegando insistiu:

Eu preciso ter um filho
Para me realizar
Já fui rainha do milho
E também miss Ceará
Já desfilei na fanfarra
Agora chega de farra
Eu quero é amamentar!

Preciso de tua ajuda
De tua compreensão
Por favor não me iluda
Diga logo sim ou não!
E Joãozinho extasiado
Com cara de assustado
Prostrado fez oração:

Minha Santa Lady Gaga!
Virgem Madonna, oh não!
Beyoncé, oh minha fada!
Não rogo por Deus em vão!
Shirley Dayanna, amada
Me tire dessa parada
Não me meta em confusão!

De repente se lembrou
Da velha Dona Da Guia:
Uma prima de seu avô
Parteira da cercania
Que no Mercado Central
Benze e vende enxoval
Vela, santo e agonia

Shirley disse: bate, bicha!
Rodando uma bolsa prata
E girando à largartixa
Mostrou as unhas de gata
Chegando em Dona Da Guia
Sorrindo disse: bom dia!
E a velha danou-lhe a lata

De uma queda foi ao chão!
Mostrando sua calcinha
Ensaiou um palavrão
Mas viu que não lhe convinha
Mordeu seu indicador
E entre dentes gritou:
Ai que ódio, mulherzinha!

Da Guia disse: o que é?
Bicha da cara de lia!
Tu pensa que é muié?
Credincruz, ave maria!
Ói as trêis noite de escuro!
Teu lugar é no monturo!
Vai timbora logo, avia!

Shirley pediu uma imagem
De Padim Ciço Romão:
Quero render homenagem
E pedir sua benção
Será que ele me entende?
E meu desejo atende?
Me dando um bucho, ou não?

A velha empalideceu
E suando frio caiu
Um homem disse: morreu!
Shirley Dayanna fugiu
Foi pra casa duma amiga
Feminista entendida
Que assim lhe advertiu:

Shirley, você tá pirada
Perdeu a noção de tudo
Deixe dessa palhaçada
Deus pra você está mudo
E o Padre Ciço Romão
Não lhe dará atenção
Tudo isso é absurdo!

Para que engravidar?
Nestes tempos pós-modernos!
Todas querem abortar!
Leia aqui nos meus cadernos!
Quando eu penso que vocês
São as radicais da vez...
Defendem mitos eternos

Já que quer ser genitora
Porque não faz adoção?
Hoje a lei é promissora
Basta uma petição...
Minha filha, se oriente
Seja mulher diferente
Deixe de esculhambação

Shirley disse: queridinha
É meu desejo e pronto!
Você já ta passadinha
Mas eu inda tô no ponto
Vê se me ajuda a viver
Chega de teretetê
Me deixe ler este conto!

Então Shirley arrancou
Um livro de uma estante
E a feminista ficou
Pálida naquela instante
Era um texto de magia
Carregado de heresia
Uma peça alucinante

As Bichas Madres de Aurora?
Não é possível, menina!
Eis a caixa de Pandora!
Isso muda minha sina!
Tenho que levar pra casa!
É hoje que eu crio asa,
Peito, bunda e vagina!

O livro é baseado
No Segredo das Raimundas
Um grupo organizado
De beatas moribundas
Que no século dezenove
Praticavam meia-nove
Dentro duma catatumba

Eram cinco travestis
Que viviam no sertão
E viraram colibris
Depois duma maldição
Pois com o poder da mente
Foram mães precocemente
Hoje são assombração

Raimundas se travestiam
Em noite de lua cheia
E pelas ruas saíam
Uivando como sereias
E dentro dum cemitério
Ali se dava o mistério
Que todo corpo incendeia

Fingiam-se de beatas
Para vestido usar
Mas, às vezes, de gravatas
Iam pra missa rezar
E depois da cerimônia
Perdiam toda a vergonha
E transavam sem parar

E para encher de cores
As vestes tradicionais
Elas chupavam as flores
Dos altares principais
Colorindo suas bocas
E ficando muito loucas
Para os grandes bacanais

Porém uma destas cenas
A população flagrou
E a dança da macarena
Que o grupo reinventou
Irritou a Dona Helena
Que sem ter dó e nem pena
Uma a uma matou

Mas na cauda de Bisonho
Elas deixaram um segredo
Que através de um sonho
Aprenderam muito cedo
Dizia: Pra ser feliz
Ouça o que o coração diz
E nunca mais tenha medo!

Sentada dentro do carro
Com olhos arregalados
Shirley fumou um cigarro
Apreciando o babado
Parecia onipotente
Criando em sua mente
Um insight arretado

Lendo fervorosamente
Logo tudo entendeu
O poder do inconsciente!
E todo seu apogeu
Viu que para engravidar
Bastava ela imaginar
E assim lhe ocorreu

Sorriu genuinamente
Para as deidades fiéis
Sentindo estranhamente
Da cabeça até os pés
Transformação corporal
- Algo sobrenatural! -
E assim contou até dez

Um: estou engravidada!
Dois: Isto é fenomenal!
Três: Me sinto iluminada!
Quatro: Hoje é natal!
Cinco: Viva a putaria!
Seis: Tô cheia de energia!
Sete: Benedito pau!

Oito: Tudo é permitido!
Nove: Eu quero voar!
Dez! Ouviu-se um estampido
E algo estranho no ar
Shirley estava flutuando
Sobre a cidade pairando
E a multidão a olhar

Assim se deu o milagre
Travesthriller sensual
E cachaça com vinagre
Foi a poção magical
Shirley Dayanna feliz
Foi à missa da matriz
Numa entrada triunfal

Desceu as ruas do centro
E o povo todo aplaudindo
Ela sentia por dentro
O menino se bulindo
Era sua apoteose
Nem lembrava da neurose
Que antes vinha sentindo

A notícia se espalhou
Como água na ladeira
Shirley mal engravidou
E o boato já na feira
Todo mundo interessado
No novo mito gerado
Nesta terra milagreira

Virou capa de jornal
Da Palmeirinha ao Sudão
Na mídia internacional
Rádio e televisão
Até o Barack Obama
Enviou um telegrama
Festejando a ocasião

O prefeito da cidade
Mandou congratulações
Mais de mil autoridades
Fizeram bajulações
Ouviu-se o bispo dizendo
Que o feito era tremendo
Digno de celebrações

A gravidez mais falada
Desta era milenar
Muita tese elaborada
Tentando tudo explicar
Cafuçu fazendo intriga
Falando mal da amiga
Mas querendo o seu lugar

A vovó Idelzuíte
Fofa, paba e orgulhosa
Curada da homofobite
Gritava cheia de prosa
Dizendo: é minha filha!
Eita bicha maravilha,
Santa, linda e corajosa!

A bisavó, Dona Glória
Beata só cem por cento
Espalhou logo a história
Que Shirley era anjo bento
E que sempre foi mulher
Por isso Deus é quem quer
Que ela tenha um rebento!

Sendo o fato destacado
Em nível internacional
Ninguém falou em pecado
Tudo era sensacional
O objetivo agora
Era contar a história
Com viés episcopal

Atribuíram o feito
Ao Patriarca Maior
Que se remexeu no leito
Onde voltamos ao pó
E sob o slogan 'Pra Frente':
Fez-se a marcha-penitente:
Shirley, você não tá só!

Com todo este alvoroço
De notícia alvissareira
Foi marcado um almoço
Pra traveca parideira
Onde a cúpula do poder
Deseja escolher
Um nome para a herdeira

Mas Shirley disse baixinho:
Não quero saber o sexo
Meu bebê tem meu carinho
Este será nosso nexo
Humano fundamental
Sem padrão inaugural
Pois todo ser é complexo!

Dentre os vários convidados
Seus amigos mais queridos
Todos muito emocionados
Falaram ao pé do ouvido:
Shirley, você arrasou!
Fez escola, inaugurou!
Tudo agora faz sentido!

Uma revista propôs
Que Shirley nua posasse
Mas sua família impôs
Que ela muito cobrasse
Mas ela assim decidiu:
Só poso pra Globo-news
Ou então para Prima Facie

Porém ficou combinado
Que um curta seria feito
Nada de muito parado
Tudo com muito efeito
Livre manifestação!
E muita demonstração
De bunda, perna e peito

Seria tudo filmado
Registrado com requinte
Tudo muito organizado
Nada de século XX
A cidade em polvorosa
Totalmente vaidosa
Da bichona ex-acinte

Diversos comerciantes
Quiseram patrocinar
Muitos eram confiantes
No filão que ia dar
Tinha até cordelista
Querendo ter uma pista
Do filme para narrar

Foi uma equipe tremenda
Pra trabalhar no local
Pois para narrar a lenda
Só mesmo profissional
Designer-maquiador
Roteirista e diretor
Tudo homossexual

Rosa Barros fez questão
Enquanto cinegrafista
De antes da gravação
Tentar fazer uma lista
De bicha, traveca e bofe
Para um belo making of
Ou tape alternativista

Pensava num musical
Em estilo procissão
Beat e banda cabaçal
Numa perfeita fusão
Bendito e música pop
Dancing-gay pra dar ibope
E muita vela na mão

Entre os artistas cotados
Alguns muito especiais
Todos muito devotados
Às temáticas marginais:
Jânio, Mano e André
Mauro, Sílvio e Dedé
Joaquina e outras mais

Até que chegou o dia
Da primeira encenação
Em Juá só alegria
Muita cor e emoção
O set foi preparado
Todo mundo maquiado
Câmera, luz e ação:

De braços dados com Eike
-Seu Reinaldo Gianecchine-
Ela caprichou no make
Para o evento sublime
Poderosa e retumbante
Estrela, mãe e amante
Adentrou a limousine

As fofoqueiras do mundo
Todas presentes no ato
Muitas querendo, no fundo
Protagonizar o fato
Procurando um defeito
Uma disse desse jeito:
Shirley tem cara de rato!

Uma pessoa gritou:
Silêncio, maleducados!
Ali passava um andor
E caminhões enfeitados
E na banca de cordel
Vídeo e cd a granel
Em rosários pendurados

Assim é o Juazeiro
Do Padim Ciço Romão
Onde tem muito romeiro
Muita fé e oração
Bodega pra todo lado
E véio amancebado
Que chora e pede perdão

É dia 20 do mês
São seis horas da manhã
Com uma saia xadrez
E uma blusa de lã
Na calçada do Socorro
Ela grita: eu mato e corro!
É Zefa doida, anciã

Agarrada numa rosa
Com um envelope na mão
Um tanto quanto nervosa
Repetindo uma oração
Está uma rapariga
Imune a qualquer intriga
Pedindo sua benção

Gente que só formigueiro
Vendo a cidade crescer
Circula muito dinheiro
-Pois tudo é pra vender-
Um misto de drama e fé
Na terra onde Shirley quer
Vê seu herdeiro nascer

Travesthriller objetiva
Mostrar a diversidade
E também relativiza
Toda impossibilidade
Põe a imaginação
Pra cair em tentação
E colorir a cidade

O filme-cordel é isto:
Absurdo teatrado!
Escrito pra ser malvisto
Quiçá mal interpretado
A nossa proposta é esta:
-Ambiciosa e modesta-
Subverter o pecado!

Nossa cena derradeira
Mostra um clip do lugar:
Que vista mais altaneira!
Vale a pena visitar!
Há um bar muito vistoso,
O História de Trancoso
Nos encontramos por lá!

Aqui termino meu texto
Não sem antes dedicar
A Orlando, meu pretexto,
Que me propôs versejar
Sobre uma travesti
Que vive, ama e sorri
E nos ensina a sonhar.

Autora: Salete Maria

Post Script:

As fontes bibliográficas?
É simples, amigo meu...
São as histórias fantásticas
Que a vida me ofereceu
De bêbo, puta e doutor
Beato e embolador
Viado, índio e ateu!

Terra, 10/06/2010

sábado, 6 de março de 2010

8 de MARÇO

Prezadas(os), neste 8 de março, nós do Cordelirando sugerimos alguns cordéis, alusivos à temática da mulher para auxiliá-lo em trabalhos escolares, acadêmicos ou para seu próprio deleite...
Meditemos a partir dos cordéis de Salete Maria:

MULHER TAMBÉM FAZ CORDEL , CIDADANIA - NOME DE MULHER, MULHERES INVISÍVEIS DE JUAZEIRO, MULHER-CARIRI CARIRI MULHER, MULHER CONSCIENCIA NEM VIOLENCIA NEM OPRESSÃO, MULHERES FAZEM e LUGAR DE MULHER

Sugestão p/ 8 de março: CIDADANIA - Nome de Mulher

Quando minha bisavó
Vivia pelo sertão
Era um tempo de aperreio
Era grande a precisão
Mulher não tinha direito
Pro homem tudo era feito
Só ele era cidadão


Era comum se ouvir
Que mulher vive é calada
Faz a vontade do homem
Para não ficar “falada”
A mulher era um objeto
Casava pra ter um teto
E cuidar da filharada


A mulher também não tinha
Nenhum prazer sexual
Nem mesmo sonho ou desejo
Vivia como animal
Servia sempre seu dono
Ou caía no abandono
Era o destino fatal


Se quisesse trabalhar
Seria dentro de casa
Estudar era um perigo
Pois podia criar “asa”
A família exigia
Q’ela se casasse um dia
Pra ver se desencalhava


Era grande o sofrimento
Da mulher daqueles dias
Não se falava em direito
Tudo isso era utopia
Bastante coisa mudou
Mas ela continuou
Vítima da covardia


Lutar, eu sei que lutou
Se pôs contra a monarquia
Deu à luz o cidadão
Mesmo sem cidadania
Se organizou, foi à rua
Rasgou o véu, ficou nua
Pugnou por alforria
Enfrentou os militares
Disse: “queremos votar”
Ajudou fundar partidos
Deixou de silenciar
Lançou sua voz ao vento
No Poder tomou assento
Conseguiu se emancipar


Por conta de sua luta
Um preço sempre pagou
Pois mentes reacionárias
O mundo sempre gerou
Mas foi no capitalismo
Onde o crescente machismo
Outras proporções tomou

Variadas são as faces
Dos crimes contra a mulher
A violência velada
Ninguém vê, ninguém dá fé
Mas quando é ostensiva
O mundo todo se esquiva
“e ninguém mete a colher”


Há casos onde a vítima
É tida como culpada
O mundo todo pergunta
Pelo que fez a finada
Como querendo saber
Se ela fez por merecer
Ter a vida abreviada


A opressão feminina
É algo muito cruel
E apesar dos direitos
Insculpidos no papel
A violência avança
Matando até criança
De forma torpe e cruel


Aqui no meu Cariri
Dos limites já passou
Pois diversas companheiras
O machismo já matou
Foi crime de toda forma
E que ninguém se conforma
Passe quanto tempo for
Mulher de todas as classes
De idades variadas
Algumas desconhecidas
Outras identificadas
Morreram barbaramente
Mas seus algozes contentes
Estão soltos, a dar risadas


Mas vamos somando braços,
Mãos, cabeças, coração
Sigamos os nossos passos
Nenhuma luta é em vão
A conquista do presente
Foi no passado a semente
Que se plantou nesse chão


Para se fazer justiça
Não há só o tribunal
A gente também conquista
A luta em palco real
Pois se o governo demora
E o parlamento ignora
É porque votamos mal

Vamos mostrar que pensamos
E procriamos idéias
E que não só menstruamos
Gritemos em assembléia
Cidadania se quer
E tem nome de mulher
Eis a nossa epopéia
Uma questão de justiça
Estamos a colocar
Ninguém pode ser omissa
O tempo é de lutar
“Cidadania-Mulher”
É tudo que a gente quer
Não podemos mais calar

Não é justo que hoje em dia
Nada possamos fazer
Pois se vovó não queria
Desta maneira viver
Como poderemos nós
Quase cem anos após
À opressão nos render?


Eis o nosso desafio
É preciso matutar
Vovó não tinha direito
Mas hoje direito há:
Para que cidadania?
Só pra rimar com Maria?
Ou pra se exercitar?

Repito: cidadania
Já tem nome de mulher
Se não vem delegacia
Então mostremos quem é
A autoridade vil
Que com má-fé e ardil
Faz conosco o que bem quer

E pra finalizar
Um convite a OAB
(Para a luta não parar
Para não arrefecer)
Vamos nos somar agora“
pois quem sabe faz a hora
Não espera acontecer”

domingo, 8 de novembro de 2009

Do Direito de Ser Gay ou condenando a Homofobia


Diante do Tribunal
Zeca expôs a questão:
“Sou um homossexual
E peço vossa atenção
O que deve ser julgado
E d’uma vez extirpado
É o ódio; o amor, não!

Não está em discussão
A minha intimidade
Aqui a acusação
Pesa contra a insanidade
De quem ousa decretar
Que é proibido amar
Invocando a divindade

Meu direito de ser gay
Não me pode ser negado
Pois não ajo contra a lei
Quando ouso ser amado
Por alguém do mesmo sexo
Por mais que seja complexo
Esquisito ou estranhado

Sou eu, pois, um cidadão
Que trabalha e contribui
Com esta grande nação
E que dela não se exclui
Mereço todo o respeito
Sou sujeito de direito
Que avança e evolui

O que temos que julgar
É a tal da homofobia
Que está a provocar
Mortes pela cercania
Privando gente decente
De viver alegremente
Entre nós, em harmonia

Não podemos conceber
Que a injustiça impere
Temos que nos envolver
Pois toda morte nos fere
Todo gay é ser humano
Todo ser é nosso “hermano”
Se pensa assim, não tolere

Não seja condescendente
Cúmplice ou co-autor
Muito menos conivente
Com tais atos de horror
Se você tem consciência
Denuncie a violência
Seja lá contra quem for

Não me chame de demente
Anormal ou acintoso
Nem tampouco de indecente
Pecador ou monstruoso
Ouse atacar injustiças
Reveja suas premissas
Não sou eu o criminoso!

O que há de errado em mim?
E que você não suporta?
Tente escrever outro fim
Para a velha história torta
Um defensor de direito
Não dormirá satisfeito
Omisso, fechando a porta!

A diferença existe
Não adiante negar
Pra que este dedo em riste
Sempre a me apontar?!
Vá julgando a minha vida
E escondendo a ferida
Que tu não ousas curar!

Em toda a Humanidade
Houve gente como eu
Vítima da iniqüidade
Quanto inocente morreu!
Em nome de um modelo
Que sempre imprimiu um selo
Separando tu e eu

Foi assim com outros seres
Igualmente “diferentes”
Ante os “podres poderes”
Continuaram silentes?
Mulheres, negros, judeus
Anciãos, crentes, ateus
São todos eles doentes?

Suplico, reflitam mais
Sobre vossas posições
Examinem os anais
Das vossas “convicções”
Vejam que todos perdemos
Que Justiça defendemos
Admitindo exceções?

Repito: eu sou um gay
Veado, homossexual!
Sou eu um fora-da-lei?
Delinqüente, marginal?
Tenho direito a viver?
Ou minha sina é morrer
Sob a lâmina d'um punhal?

Digam, senhores jurados,
E povo da minha terra!
Quem deve ser condenado?
É este que aqui vos berra?
Ou a tal da homofobia?
Que mata à luz do dia
Vai à missa, ora e enterra?

Eu quero finalizar
Pedindo para os doutores
Comecem a se indagar
Olhem-se nos corredores
Quem não conhece um gay?
São todos foras da lei?
Ou há algum entre os senhores?

Quem nunca teve um colega
Quem sabe até um parente
Aquele a quem você nega
O direito de ser gente
De existir, ser feliz
Ser dono do seu nariz
E levar a vida contente?

Vamos, pensem um segundo!
Antes do seu veredito
Quem aqui criou o mundo?
E tudo o que “está escrito”?
Não é este o argumento?
Que lhes serve de cimento
Sobre o que tenho dito?

Deixo agora com vocês
O direito de julgar
Não é mais a minha vez
Fale quem quiser falar
Condenada a homofobia
Quem sabe por mais um dia
Muitos possam respirar

Sendo ela absolvida
Certamente ouvirão
Dizer que mais uma vida
Foi ceifada no sertão
E também no litoral
Onde gay não é igual
A qualquer um cidadão

Data vênia, meus senhores
Mas isto é covardia
Onde eu for, onde tu fores
Sempre dor e agonia
Ponham um ponto final
Sou um homossexual
Tenho direito ao meu dia!

Dia do Orgulho Gay


“Época triste a nossa em que é mais difícil quebrar um preconceito que um átomo”(Einstein)

No vinte e oito de junho
- Dia do Orgulho gay -
O mundo dá testemunho
Do que não nasce por lei:
É um dia diferente
A rua enche de gente
O marginal vira rei

Tudo fica colorido
A vida enche de graça
Há riso, grito, gemido
Gente se amando na praça
Mas nem sempre foi assim
O vinte e oito, enfim
Surgiu em meio a desgraça

Conta a história, diz Mott
Que um tumulto ocorreu
Num bairro de Nova York
E muita gente envolveu
Stone Wall era o bar
Que à paisana, ao chegar
A polícia enlouqueceu

Ao todo nove soldados
Ali duzentos fregueses
Os donos foram algemados
E espancado, por vezes
Renderam três travestis
Puseram-nas vis-a-vis
Trataram-nas como rêses

Mandaram todos embora
E humilharam os detentos
Mas encontraram lá fora
Os seres mais violentos
O povo enfurecido
Num coro mais que atrevido
Exigiram dos sargentos:

“Libertem estes rapazes
Ninguém aqui é bandido
Saiam, pois somos capazes
Dum protesto decidido
Homossexual é gente
Desumana é a mente
De quem espanca ‘entendido’

Quase uma hora de atrito
No ano sessenta e nove
A polícia com apito
Tudo por causa dum ‘love’
O Estado achando demais
Amor de homossexuais -
Só de lembrar me comove

Surgiu ali o embrião
Duma data mundial
Virou comemoração
Qual a noite de natal
Agora no interior
Tem até vereador
Pelo gay municipal

Esse é o dia de orgulho
De quem sofre a opressão
Dia de muito barulho
E de grande agitação
De bandeira colorida
Para celebrar a vida
O amor e a paixão

Dia de dizer ao mundo:
Respeite a diversidade!
Abaixo o ódio imundo
Basta de mediocridade
A Humanidade é
O gay, o padre, a mulher
Homem de terceira idade

A data exige de todos
Mais amor, mais tolerância
Propõe o fim dos engodos
Exige mais segurança
Direito e democracia
Sossego, cidadania
Respeito e esperança

Por isto no Cariri
Onde tudo nos fascina
Onde a flor de pequi
Desabrocha e nos ensina
O gay tem que se afirmar
Organizado, lutar
Contra a morte como sina

É dever de toda gente
Combater o preconceito
Quem se julgar consciente
Quem quer exigir direito
Jonatan Kiss foi assim
Amou e viveu, enfim
Conquistou nosso respeito!

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O QUE É A VELHICE?


Dois velhos filosofavam
Acerca de suas vidas
Sobre tudo comentavam
Amores, dores, feridas
Ela falava baixinho
Ele escutava sozinho
Aquelas frases sofridas:

É sempre muito cruel
O mundo em que a gente vive
Pois o que está no papel
Na prática não sobrevive
O respeito ao idoso
É um assunto jocoso
Demagogo, inclusive

Você tem toda razão
- disse o velho à senhora-
A tal discriminação
É a atitude 'da hora'
A nossa categoria
Jamais ganhou alforria
E a humanidade ignora

Ser velho neste planeta
É como não valer mais
É como uma camiseta
Rasgada à frente e atrás
É viver na solidão
No meio da multidão
Não sendo visto jamais

É como passar batido
É não ser observado
É como ser esquecido
Pelo ente mais amado
É como não existir
É comer e não sentir
O sabor de um guisado

É mesmo muito ruim
O que sentimos agora
Mas nem sempre foi assim
Ao longo de toda História
O velho tinha valor
Sapiência e amor
Status, luzes e glória

Era muito respeitado
Por ser mais experiente
Bastante considerado
Por ser de tudo ciente
Mas perdeu sua importância
Quando surgiu a ganância
Da parte do mais valente

Quando a força se impôs
E os bens materiais
Quando ficou pra depois
O amor e tudo mais
Quando enfim o capital
Deu o passo inicial
O velho não valeu mais

Quando o exército pediu
O vigor da juventude
Quando a indústria exigiu
Braço forte e saúde
Quando o Estado percebeu
O “custo” que o velho deu
Disse: é preciso que mude!

Que nada de experiente!
O velho só atrapalha
Esclerosado e demente
É como uma cangalha
Vamos ter de carregar
Levando a todo lugar
Este resto de metralha

Então o velho deixou
De ser alguém venerado
E bem depressa passou
A ser mui enxovalhado
De respeitada, a velhice
Passou a ser rabugice
E o velho foi humilhado

A tal ancianidade
Foi vista então com desdém
Quem fizesse mais idade
Não seria mais ninguém
Chamar-se-ia antiquado
Obsoleto, quadrado
Arcaico, matusalém

Alguns os chamam trambolho
Fardo, inútil, atrasado
Não põem as barbas de molho
Vivem um tempo parado
Acham que o hoje é eterno
Se julgam sempre moderno
Amanhã serão passado

O culto à mocidade
Que consome, que trabalha
Aos que têm pouca idade
A quem, em tese, não falha
Aos que servem o capital
É o jogo do vil metal
Dessa corja de canalha

O que é velho é remoto
É negativo, é ruim
É qual um álbum de foto
É a ante-sala do fim
Faz parte da neo-cultura
É a porra da sepultura
Por que tem que ser assim?

É certo que é relativo
Nem tudo que é velho é bom
Mas eu falo do ser vivo
E não da caixa de som
O homem que envelheceu
Aprendeu, amou, viveu
Plantou, colheu, deu o tom

A vida não é constante
Tem fases, muda, evolui
A idade é um instante
O tempo ninguém possui
A maturidade vem
Para o mal ou para o bem
Quem quiser que continue!

Ambos foram professores
Cultos, intelectuais
Ela doutora Dolores
Ele, mestre Ernesto Paz
Uma vez aposentados
Ficaram enclausurados
Não souberam viver mais

Naquele dia a idéia
De voltar a pesquisar
Pra entender a epopéia
Do homem ao declinar
Cogitou de teoria
Armou-se de energia
Pr'uma tese formular

Decidiu sair à rua
E entrevistar a massa
Foi uma tática sua
Sentar-se ali na praça
A inquirir quem passava
Sobre o tema que versava
Trabalhava ele de graça

Nesta hora então passou
Um outro casal longevo
Ernesto a eles parou
E disse-lhes: eu escrevo
Um livro sobre o idoso
E quero saber do povo
Se continuá-lo devo

Quero provar que o homem
Não suporta envelhecer
A mal, por favor, não tomem
Este meu (pré) parecer
Mas é que tudo conheço
E respeito então mereço
Pelo que vou escrever

De vocês quero um conceito
Sobre esta condição
Não precisa ser perfeito
Pois vejo limitação
Eu só vou aproveitar
Aquilo que interessar
À minha atual visão

O varão disse: colega!
O tema é muito atual
Envelhecer é uma trégua
Que a gente dá, afinal
Faz parte de um processo
Não sei ao certo, confesso
Se é recomeço ou final

Disse a velhinha passante:
Veja que maravilhoso
Perguntas neste instante
Se meu guarda-chuva é novo?
Como poderei comprar
Se o que recebo mal dá
Pra comer arroz com ovo?

Um outro entrevistado
De meia-idade falou:
Estou muito apressado
Em nada ajudo o senhor
O tema não me interessa
Tô vexado, tô com pressa
Vá consultar meu avô

Uma moça que passava
Disse: a velhice é um saco!
Um jovem que estacionava
Gritou: é o mó barato!
Os velho não vêem nada
A gente rouba a mesada
Eles juram: foi um rato!

Uma criança inocente
Falou: meu avô é lento
Mas ele me dá presente
Quando recebe o “aposento”
Uma madame vulgar:
“Eu sofro só de pensar
Ficar velho é um tormento”

Uma senhora enxuta
Benzeu-se e respondeu:
“Eu enfrento uma luta
Que minha mãe já sofreu
Escondo uma ruga aqui
Um pé-de-galinha ali
Já não reconheço eu”

Mais adiante um rapaz
Disse: eu conheço alguém
O senhor não é capaz
De dizer que anos tem
É uma velha humorada,
Que vive a dar risada
Gozada como ninguém

O mestre se interessou
Por encontrar tal pessoa
Ele a entrevistou
E viu que não era à toa
O jovem tinha razão
Era cheia de emoção
Contava proas e loas

Disse ela sem sermões:
Velha é a serra, a estrada
Envelhecer traz questões
Com mil respostas erradas
Se já não temos vigor
Transbordamos em amor
Mas já não somos amadas

A velhice põe em cheque
Algumas convicções
Já não somos mais moleques
Já não temos ilusões
O presente é o futuro
Somos o fruto maduro
Ao cabo das estações

Costumo ironizar
Com quem caçoa de mim
Gosto de me maquiar
Desde moça sou assim
Meu cabelo agora é branco
Mas não desço do tamanco
Uso roupas de cetim

Eu sei que há diferenças
E há discriminação
Sei que muita gente pensa
Que o velho não tem visão
Eu mesmo cega dum olho
Costuro, cato piolho
Assisto televisão

Tá certo, nada é igual
Uns estão na solidão
Em casa ou num hospital
Em asilo ou em pensão
Mas se a gente não sorrir
Não namorar, não sair
Piora a situação

Se o velho rico recebe
Tratamento especial
E o velho pobre, da plebe
Mal toma um fino mingau
Não vejo o governo agir
Não tenho porque mentir
Vida boa é a de Lalau

Nessa ocasião chegou
Um velho muito janota
Envolto num cobertor
Calçando um par de botas
Olhou o homem e falou:
Eu vou contar pro senhor
Por que fui Rei em Pelotas

Costumo matar charadas
Como serei atrasado?
Se tenho idade avançada
Só posso viver avançado
O povo é meio bilé
Pensa que o velho é
Um doido, um abirobado

Não sou triste como tu
Que é jovem só por disfarce
Se tu tens prega no cu
Também as tenho, na face
Digo que sou sazonado
Macróbio, experimentado
Representante da classe!

O professor encerrou
A gravação e partiu
Chegou em casa e pensou
Em tudo o quanto ouviu
Conclui: que coisa louca!
Velhice é o que sai da boca
Do jovem-mundo-senil

É menos limitação
E mais visão distorcida
É menos saturação
E mais idéia vencida
Ser velho é um conceito?
Não sê-lo é preconceito?
Não sei de nada da vida!

A velhice é o futuro
- o mundo envelheceu-
Quem fez o sexo seguro
Um filho não concebeu
Em breve o mundo será
Mil velhos à beira-mar
Somos ele, tu e eu

Nem todo velho é ranzinza
Nem todo outono é tristeza
Nem toda nuance é cinza
Nem toda falta é pobreza
Nem tudo que é novo é zero
Nem tudo que tenho quero
Nem toda tese é certeza

E para finalizar
A autora faz sua fé
“Preciso homenagear
Uma ‘antiga’ mulher
É minha avó a danada
90 anos de estrada
Salve Maria José!”

O QUE É SER MULHER?

Sobre a mulher já se disse
Tudo que se imaginar
D’uns eu já ouvi tolices
D’outros, me pus a pensar
Mas este ser – a mulher-
Afinal o que é que é?
Quem se atreve a explicar?

É, afinal, a pessoa
Que nasceu pra procriar?
Ou é a esposa boa
Que tão bem cuida do lar?
É a moça delicada?
Ou a menina arrojada
Que sabe escandalizar?

Responda: o que é mulher?
Para que eu compreenda
É alguém que dança balé
E tem no sexo uma fenda?
É a noiva de Tarzan?
Ou é a loira do “Tchan”?
Cujo corpo está à venda

É uma triste donzela
Que mora no interior?
Ou a balzaquiana bela
Que na Playboy se mostrou?
Mulher é filha do cão?
Ou é de Deus criação
Que o diabo cooptou?

Afinal, que é mulher?
Este ser tão contemplado?
Que tão bem faz cafuné
Deixa o homem estimulado
Será alguém que menstrua?
Que não raro fica nua?
Que inventou o pecado?

É mulher quem sucumbiu
Aos apelos sexuais?
É mulher quem nunca ouviu
O grito dos marginais?
É mulher quem noite e dia
Vive combatendo estria
E não luta pela paz?

É mulher quem é omissa
Frente à exploração?
Ou é mulher quem cobiça
Ser amante do patrão?
É mulher quem não resiste
Acha normal e admite
Viver sob a opressão?

Mulher é aquele ser
Que vive para um varão?
Ou mulher pode viver
Com outra mulher, então?
Quem afinal é mulher
Aquela que bate o pé
Ou a que nunca diz não?

Alguém já nasce mulher?
Ou em mulher se transforma?
E se um homem quiser
Então mudar sua forma?
Quem poderá impedir?
Se a alma consentir
Quem pode ditar a norma?

Alguém nesta condição
Terá então que usar saia?
Ou fazer depilação
Sempre que sair à praia?
Combater a celulite
Nunca recusar convite
Antes que o seio caia?

Mulher é quem faz o tipo
Da mulata “globeleza”?
Ou quem arrisca uma “lipo”
E agride a natureza?
É alguém que se enfeita
Mantendo a mente “estreita”
Em nome da boniteza?

Será mulher a gordinha
Que se ama e se respeita?
A negra, baixa, a magrinha
Que como é se aceita?
Ou somente é mulher
Quem o “mercado” disser
Ou por ele for eleita?

Que pergunta melindrosa
Esta que me faço agora
Mulher será a “gostosa”?
Ou a pacata senhora?
Ou mulher então será
Aquela que mais amar
O homem que a ignora?

Parece-me que a mulher
É um ser fundamental
Não é melhor que homem
Convém que seja igual
Não é mero “complemento”
É um “acontecimento’'
Do dito reino animal

Gente como o homem é
Não precisa apelar
E não é por ser mulher
Que melhor governará
A questão é o que pensa
O sexo só não compensa
“Tatcher” taí pra provar

É claro que entendemos
Que existe opressão
O machismo condenemos
Não façamos concessão
Mas no dia da mulher
Responda-me se souber
O que é ser mulher, então?


domingo, 19 de julho de 2009

Extra! Extra!

Extra! Extra! O cordel A História de Zé Leitor, bem como o Cordel Cidadania Nome de Mulher fizeram tanto sucesso que já estão na segunda edição! Viva!
De leitura fácil e didática, os cordéis de Salete Maria têm sido adotados em Escolas de ensino Fundamental e Médio para a discussão de temas pertinentes como aVelhice, Assédio Moral, Direitos dosHomossexuais, Direitos das Mulheres, Cidadania, Direitos Humanos em geral, etc. O diferencial da autora, além da primazia do verso são as figuras de linguagem, a intertextualidade e o modo como brinca com aspalavras.
Caso você também tenha interesse em adquirir os cordéis para uso pessoal ou trabalho em grupo, deixe um comentário neste post com o seu email que entraremos em contato. Vendemos os cordéis a preços módicos.
E sim, Zé Leitor veio de cara nova, olha aí:
Zé recebeu um convite
Que nunca foi feito antes
Pois era coisa de elite
Ou de jovens estudantes
Foi chamado a estudar
Escrever, ler e contar
Quanta coisa interessante!

Ficou meio pensativo
E disse para a mulher:
“Inté hoje eu sobrevivo
Sem sabê lê um papé
Agora nessa idade
Num tenho capacidade
Vou andar de marcha à ré?”

“Já não tenho condição
De aprendê o bê-a-bá
Tenho preocupação
Vivo só pra trabaiá
Agora esta invenção
Estudá, fazer lição
Para mim isto não dá”

A mulher disse: “José
Tu tá com medo de quê?
Sempre foi home de fé
Vai agora esmorecê?
Ta rejeitando a escola?
É direito e não esmola
Conforme ouvi dizê”

“Além do mais hoje em dia
Ninguém mais fica de lado
Aqui pela cercania
Tá todo mundo letrado
Home, muié e minino
Só tu não tá assitindo
O Brasil Alfabetizado”

“O povo qué estudá
Vai atrás e se concentra
Não dá pra desanimá
Na vida tudo se enfrenta
O passado já passou
O presente começou
O futuro a gente inventa”

“É mermo, tu tem razão
-disse José, de repente-
Num vou pagá um tostão
Isto me deixa contente
Vou apanhá um caderno
O mais bonito e moderno
E vou me dá de presente”

“Vou estudá, tá na hora
Vou tentá aprendê lê
Se eu nunca fui à escola
Não foi falta de querê
Desde cedo trabaiando
Meu velho pai ajudando
Levei a vida a sofrê”



“Assim como eu, milhares
Por este Brasil afora
Basta olhá nos olhares
Ninguém mais nos ignora
Eu vou sim, tô na peleja
Nada nos vem de bandeja
É chegada a minha hora”

“Vou tirá o atrasado
Nunca é tarde pra aprendê
Criança fui pro roçado
Hoje não sei escrevê
Mas sei que posso tentá
É tempo de avançá
Chega de teretetê”

A mulher disse: “Você
Já tá falando bonito
Mesmo não sabendo lê
Nada do que tá escrito
Já mostra que tem futuro
Vejo que está seguro
E em você acredito”

“Sei que é um dereito seu
Ter acesso aos estudo
Do tanto que tu viveu
O mundo mudou em tudo
Vá, José, vá estudá
Você só tem a ganhá
Já é um homem sortudo”



“Eu mermo sei lê um tico
Sei fazê um bilhetinho
As vezes até medito
E sonho mais um pouquinho
Se eu voltá a estudá
De tudo vou me alembrá
E progrido ligeirinho”

Zé ouvindo aquilo tudo
De pressa se decidiu
Deixou o olhar sisudo
O coração consentiu:
“Não custa nada tentá
E é tão bom estudá”
Pegou as coisas e saiu

Então foi ele à escola
Cheio de ansiedade
Levava numa sacola
Sonho e realidade
Chegou na sala e entrou
A professora falou:
“Nossa, que felicidade!”

“Seja bem vindo, amigo
Aproveite este momento
Esta escola é um abrigo
Tome logo seu assento
Aqui todo mundo ensina
Cada um é uma mina
Carregada de talento”



Cada um sabe um pouco
Da vida que tá lá fora
Antônio hoje está rouco
De gritar que vende amora
Maria, que é cozinheira
Hoje viu João na feira
Pertinho de onde ela mora”

“Maria Lúcia é avó
Joaquina se aposentou
Eduarda é o xodó
Porque nunca se casou
Socorro é rezadeira
Luís vai à gafieira
E Joana luta judô”

“São todos gente madura
Autoridades no lar
Ninguém aqui tem frescura
Todos querem estudar
Falamos do dia-a-dia
Um pouco da carestia
E de tudo quanto há”

José logo foi gostando
Daquele novo ambiente
Foi logo se enturmando
Achando o povo decente
Olhou em volta e sorriu
À vontade se sentiu
Pois “gente gosta é de gente”



Pegou papel e caneta
Ouviu a explicação
Lembrou da velha marreta
E do surrado macacão
As letras se embaralhavam
Parece até que mangavam
De sua concentração

Espremendo bem a vista
Ouviu tudo direitinho
No quadro tinha uma lista
De nomes bem bonitinho
A professora feliz
Usava um taco de giz
E falava bem mansinho

Tinha um “a” de avião
Um “e” de escadaria
Um “i” de informação
Um “o” de ovo, havia
Um “u” de uva, também
E ele, como ninguém
Naquilo se envolvia

Todo dia ele estudava
Depois de ter trabalhado
A professora falava
E ele compenetrado
Tinha muita explicação
Depois vinha uma lição
Do que fora ensinado



Via os colegas dizerem
Que queriam se formar
Pra uma festa fazerem
E muita gente chamar
Ele até pensava nisso:
“Imagine o rebuliço
Que neste vai dá”

Chegava em casa cansado
Ligava a televisão
Porém ficava espantado
Com tanta complicação
Via que pouco entendia
Pois como ainda não lia
Tudo era confusão

Viu a novela, o jornal
Ouviu notícias do mundo
Mas ao trocar de canal
Adormeceu num segundo
Sonhou com uma caneta
Comandando este planeta
E um papel branco de fundo

“Vixe que coisa medonha
Uma caneta falante
Com uma cara risonha
E em tamanho gigante”
E a caneta dizia:
“Olá, José!” e sorria
E lhe dava um diamante



Sobressaltado acordou
Achando aquilo estranho
De um desenho lembrou
Da forma, cor e tamanho
Olhou para seu netinho
Beijou-o devagarinho
Saiu e foi tomar banho

Achou que aquele sonho
Tinha algo a lhe dizer
Mas era muito medonho
No jeito de aparecer
Pra que caneta e papel
Comandando uma babel
Como podia entender?

Foi trabalhar matutando
E à noite foi estudar
A professora falando
E ele só a pensar
Na caneta e no papel
Sobrevoando o céu
Querendo lhe seqüestrar

Nesta noite nada viu
Que pudesse entreter
Quando da sala saiu
Sem nada ali entender
A professora sentiu
Que ele nada ouviu
E foi sondar pra saber:



“O que há com o senhor
Que nada quis comentar
Parece que não gostou
Da aula, do ensinar”
Ele disse: “não senhora
Eu tava meio por fora
Nada tenho a me queixar”

Ela insistiu: “o senhor
Tava absorto, perdido
Eu lhe peço, por favor
Não se sinta preterido
Se estiver desgostoso
Ou quem sabe ansioso
Pode se abrir comigo”

“Não, senhora, Ave Maria
A aula é muito boa
Me desculpe eu não queria
Ofender sua pessoa
É que eu às vezes penso
Este mundão é imenso
E a vida da gente voa”

“Eu tô aqui nesta idade
Tentando aprendê lê
Pois na minha mocidade
Isto não podia sê
Vivia para o roçado
Ganhando pouco, empregado
Vivendo ao léu, a mercê”



“Por isso mesmo o senhor
Deve dar valor a vida
Se viveu, se batalhou
Se sofreu sua ferida
Deve lembrar o poeta
Que constrói a sua meta
Na palavra proferida”

Diga que “valeu a pena”
Pois tudo vale na vida
“Se a alma não é pequena”
Nela tudo tem guarida
Viva o daqui pra frente
Vale viver o presente
Desta vida comovida

Ele disse: “a senhora
Tá coberta de razão
O que disse só melhora
O meu velho coração
Vou, sim, aprendê a lê
E um dia hei de escrever
Um verso cheio de emoção”

“Com muito afinco e prazer
Meteu a fazer lição
Queria logo aprender
E abrir sua visão
Dizia a sua mulher
Agora eu boto fé
Que serei um cidadão”



No trabalho ele falava
Do mundo que descobria
O servente o olhava
E muito pouco entendia
Mexendo massa e cimento
Só via o mundo cinzento
Por que tanta euforia?

No caderno escrevia
O próprio nome: J-O-S-É
Em voz alta ele lia:
“Jota, ó, ésse e é”
Falava de sua história
Do que tinha na memória
Da vida como ela é

Assim fazia progresso
Mas as vezes se zangava
Quando pegava um impresso
E pouca coisa encontrava
Do mundo em que ele vivia
Pois toda coisa que lia
De outro mundo falava

Ficava desiludido
Com tanta dificuldade
Sentava meio abatido
Contava sua idade
“Já tenho sessenta anos
Eu nem posso fazê planos
De ir para faculdade”




Mas a mulher companheira
Que um pouco sabia ler
Dizia à sua maneira:
“Zé, não se deixe abatê
Tu lendo a tua vida
Melhorando tua lida
Já é bastante o crescê”

Zé ouvia aquilo tudo
E matutava, baixinho:
“Nunca vou tê um canudo
Sempre serei Zé Povinho
Esse negócio de lê
Contá, falá, escrevê
Não é bem o meu caminho”

Mas ao mesmo tempo via
Que muita coisa mudava
Quando ia a padaria
O troco ele contava
Fazia atenta sondagem
Lia toda embalagem
Daquilo que ali comprava

Ao tomar a condução
Ia no transporte certo
Ao receber um cartão
Já entendia correto
Uma ficha preenchia
Um jornal ele já lia
O mundo tava mais perto


Mas algo ele queria
E desejava fazer
Seria naquele dia
Não podia mais conter
Iria ele, afinal
Ao cartório eleitoral
Seu nome subscrever

Queria votar, então
E decidir seu destino
Ao apertar o botão
Não se sentir tão cretino
Queria ver o seu nome
Assinar seu sobrenome
Na folha de papel fino

E assim tudo se deu
Ele se sentiu completo
Vendo ali o nome seu
E não mais “analfabeto”
Que prazer ele sentia
Ate chorou nesse dia
Olhando do piso ao teto

Mas outro desejo tinha
E queria realizar
Faria uma cartinha
Pra seu amor declarar
Diria para Helena
Sua esposa: “Pequena,
não me canso de te amá”



Queria deixar escrito
O que nunca registrou
Num texto muito bonito
Falando só de amor
Queria dizer a ela
Igual se diz na novela:
Você é a minha flor!

Mas tinha aquela vergonha
Podia parecer tolo
Tem coisa que a gente sonha
E a vida passa o rolo
Um homem da sua idade
Falar de amor e saudade
Só tendo cara de bolo

Procurou a professora
E falou do Ceará
Da seca devastadora
Que ele já viu por lá
Disse que tinha um parente
Que gostava de repente
E lhe ensinou a gostar

Disse que nas cantorias
Dos cantadô de viola
Sempre tinha uma magia
Igualzinha a da escola
As palavra vinham vindo
E os verso iam saindo
La do fundo da cachola



Falou que ouviu cordel
Ser declamado na feira
Um poeta, um menestrel
Desses sem eira nem beira
Ensinava o povo lê
Sem grande esforço fazê
Somente na gemedeira

Disse que na sua terra
Tem verso para quem qué
E que lá tem uma serra
Por nome de Assaré
Onde um poeta roceiro
O maió dos brasileiro
Mal rabiscava um papé

O poeta Patativa
Que Deus o tenha no céu
Foi uma ave nativa
Para o país um troféu
Home de pouca leitura
Mas de palavra segura
Partiu envolto num véu

A professora propôs:
Que tal você recitar
Hoje, amanhã ou depois
Do poeta popular
Um verso bem empolgado
Pra lembrar do seu passado
E também do seu lugar?




Que tal você nos trazer
Um cordel para leitura
Para a gente conhecer
Esta augusta criatura:
Patativa do Assaré
Que o mundo sabe quem é
Cheio de força e candura

Zé ficou maravilhado
E disse: Eu trago, sim
Já estou emocionado
É importante pra mim
Lê algo que me encanta
Que minha alma levanta
Obrigado, meu Padim!

E assim foi que se deu
No final daquele ano
Zé, logo que amanheceu,
Já tava fazendo plano
Mas suas pernas tremiam
Os lábios estremeciam
Era grande o desengano

No trabalho mal falou
E o companheiro sentiu
Um aperto o sufocou
Sua voz ninguém ouviu
Tava nervoso, coitado
Não se achava preparado
Pra tarefa que assumiu



Chegando em casa de volta
Da construção que fazia
A mulher viu a revolta
Pois seu olhar não mentia
E disse: Ô meu José
Onde anda a tua fé
Que é tua garantia?

Tá nervoso, acabrunhado
Porque vai se apresentá
Teu terno tá engomado
Eu já vou me arrumá
Quero vê tu recitando
Lendo um verso e comentando
Etecetera e coisa e tá

O medo se agigantava
E José não quis comer
Toda noite ele jantava
Conversava como o quê
Mas nesta noite, tadinho
Mal bebeu um bucadinho
Do chá que mandou fazê

E então todos partiram
Para a comemoração
Os colegas consentiram
Na tal apresentação
José faria a leitura
Dum cordel da criatura
Mais famosa do sertão


Na platéia a lhe sorrir
A mulher e um vizinho
Também estava ali
O servente “Seu Toninho”
Os colegas orgulhosos
Todos muito atenciosos
Para ouvir o tal versinho

Zé foi chamado e aplaudido
Mas só Deus via a aflição
Ela tava tão perdido
Quase golfa o coração
Mas mesmo assim começou
Primeiro ele explicou
Quem foi Patativa, então

Disse que foi O Poeta
Mais sagrado do nordeste
Que sempre foi sua meta
Falar do cabra da peste
E que ficou conhecido
Por ser cantado e lido
Do litoral ao agreste

Sendo assim vou recitá
Um poema conhecido
Vaca Estrela e Boi Fubá
Foi gravado e foi ouvido
Um cantô do Ceará
Em sua voz fez soá
Em tom de pranto e gemido:



I
“ Seu dotô, me dê licença
Pra minha história eu contá
Se hoje eu tou na terra estranha
E é bem triste o meu pená,
Mas já fui muito feliz
Vivendo no meu lugá
Eu tinha cavalo bom,
Gostava de campeá
E todo dia aboiava
Na portêra do currá
È ê ê ê Vaca Estrela
Ô ô ô ô Boi Fubá

II

Eu sou fio do Nordeste,
Não nego meu naturá
Mas uma seca medonha
Me tanjeu de lá pra cá
La eu tinha meu gadinho
Não é bom nem maginá
Minha bela Vaca Estrela
E o meu lindo Boi Fubá,
Quando era de tardezinha
Eu começava a aboiá
Ê ê ê ê Vaca Estrela,
Ô ô ô ô Boi Fubá
III
Aquela seca medonha
Fez tudo se trapaiá;
Não nasceu capim no campo
Para o gado sustentá,
O sertão esturricou
Fez os açude secá
Morreu minha Vaca Estrela
Se acabou meu Boi Fubá
Perdi tudo quanto tinha
Nunca mais pude aboiá
Ê ê ê ê Vaca Estrela
Ô ô ô ô Boi Fubá

IV
E hoje, nas terras do Su
Longe no torrão natá
Quando vejo em minha frente
Uma boiada passá
As água corre dos óio
Começo logo a chorá
Me lembro da Vaca Estrela
Me lembro do Boi Fubá;
Com sodade do Nordeste
Da vontade de aboiá
Ê ê ê ê Vaca Estrela
Ô ô ô ô Boi Fubá”

Todos então aplaudiram
A leitura emocionada
Muitos ali nunca ouviram
O som de uma toada
Ficaram muito tocados
Alguns choraram calados
Naquela noite encantada





A professora Luzia
Disse: Que bela leitura
Pois antes eu não sabia
Da sua desenvoltura
É bom a gente entender
E ver um leitor nascer
Ensinando outra cultura

Vejo que muito de vós
Se desencantam ao ler
Mas cabe sempre a nós
Procurar lhes conhecer
Pois é preciso criar
Formas de estimular
E o neoleitor envolver

Com um poema matuto
Zé mostrou que sabe ler
Ler a vida, ler o mundo
Ler um texto e escrever
Se reconhecer sujeito
Ler e ficar satisfeito
Por tudo ali entender

Escolhendo a leitura
Pelo autor e pelo tema
Mostrou de forma segura
Que aprecia um poema
Que fala do que lhe toca
E emoção lhe provoca
E faz a vida amena



Eis uma boa lição
Que Zé nos deu neste dia
Sua apresentação
Causa gosto e alegria
Estimula a prosseguir
A sonhar e evoluir
Com muita fé e magia

Zé, então, agradeceu
A condição de aprendiz
E tirou do bolso seu
Um pedacinho de giz
E disse: Quero escrevê
Para meus colega lê
O que meu coração diz

Do quadro se aproximou
E rabiscou devagar
A professora notou
Que ele estava a chorar
Uma frase desenhou
Dizendo: “Eu nada sou
Sem Helena a me amar”

Uma colega foi lendo
O que José escrevia
Helena se comovendo
Falar já não conseguia
Toninho, o companheiro
Decidiu-se bem ligeiro
Que também aprenderia



Falou para os presentes:
Eu farei como José
Estamos todos contentes
Vejo agora que da pé
Vou também aprender ler
Contar, falar, escrever
E amar minha mulher

Foi muito contagiante
O momento da leitura
A partir daquele instante
Surgia nova postura
Ficando ali declarado
Brasil Alfabetizado?
Pra todos literatura!

E assim se deu então
A história de Zé Leitor
Não foi contada em vão
Aqui fala o narrador
O nosso objetivo
É dizer que sem ter livro
Não vale o que se plantou

E livro de toda cor
Livro que fale de tudo
Não só livro de doutor
Nem só livro de estudo
Livro para relaxar
Para rir, para chorar
Para cego e para mudo



Que venha livro a mão-cheia
Que venha livro de esquema
Livros fartos para a ceia
Livro de reza e poema
Livro de gente modesta
De guerra, luto e festa
De romance e de cinema

Livro para estimular
A quem aprendeu a ler
Livro para conquistar
Quem não sabia escrever
Livro para abrir a mente
Que deixe a gente contente
E que se faça entender

Que ninguém deixe de ler
Porque não pode comprar
Que o povo possa viver
Literalmente a amar
A nossa literatura
Que representa a cultura
De todo canto que há

Assim então nós teremos
Um Brasil maravilhado
Pois todos nos já sabemos
Como se deu no passado
Poucos nesta terra liam
E quanto menos sabiam
Mas fácil eram enganados



Hoje com a educação
Para jovem e adulto
Não basta terem na mão
Um livro de grande vulto
É preciso estimular
O prazer de estudar
A partir do seu reduto

Aos poucos se vai sabendo
Que somos um universo
Quando se vai conhecendo
O valor que tem um verso
Pois na terra de José
Só se bota no papé
Aquilo em que tá imerso

Literatura em geral
Deve se patrocinar
Desde a cultura oral
Á mais moderna que há
Um blog de poesia
Pra se ler com alegria
Quando já se chegou lá

Por fim, que o Zé Leitor
Possa servir de esperança
E que cada professor
Equilibre na balança
Um pouco de seu saber
E do que pode aprender
Com velho, moço e criança



Que a escola do mundo
Mostre o seu conteúdo
Pois o saber mais profundo
Não se extrai só dum canudo
Que a leitura da vida
Possa ser a preferida
Tal qual num cinema mudo

Zé Leitor é ficção
Mas há na realidade
Abrindo o coração
Se vê José de verdade
Querendo ler um cordel
Ou rabiscando um papel
No campo ou na cidade

É só abrir a janela
E ver a realidade
Nem toda historia é novela
Nem todo choro é saudade
Nem todo texto se vende
Nem toda obra se entende
Nem todo velho é de idade

Nem todo Leitor é Zé
Nem toda obra é de arte
Nem todo pé tem chulé
Nem toda pausa é enfarte
Nem sempre o tempo é perdido
Nem todo escritor é lido
Nem tudo que trinca, parte



Nem sempre a educação
Corrigiu desigualdade
Nem toda proposição
Contempla a diversidade
Nem todo alfabetizado
Lê um texto emocionado
Com amor e sinceridade

Aqui fica o meu recado
Eu que adoro cordel
Se ficou interessado
Por este simples papel
Me manda uma carta, entao
Pois ninguém escreve em vão
Quando o limite é o céu!