Cordelirando...

sexta-feira, 27 de março de 2009

MARIA DE ARAÚJO e seu lugar na história ou A Beata Beat Cult

Maria de Araújo
Beata, pobre, iletrada
Desse enredo não fujo
Que história mal contada!
Ela não foi figurante
Era estrela fulgurante!
Da hóstia ensangüentada

E pra fazer este verso
Este texto teatral
Onde o fato controverso
Merece atenção total
Eu li Do Carmo Forti
Playboy, Bataille e gibi
Cordel, cartilha e jornal

Nesta ficção real
Dou voz a um narrador
A minha avó sou leal
Pois foi ela quem contou
Como era o Juazeiro
Naquele tempo primeiro
Quando tudo começou

(Dou voz a pesquisadora
E vou chamá-la de P
De N a narradora
E minha vó vai ser V
Se MANO se interessar
E quiser dramatizar
Esse cordel vai render...

Enquanto eles se ajeitam
E fazem a maquiagem
Aqui vocês se sujeitam
A me ouvir falar bobagem
Eu digo que este cordel
Só cumprirá seu papel
Se for sentida a mensagem)

N:
Baixinha, negra e mouca
Casta, cambota e silente
Considerada “a louca”
Devota e penitente
Mulher sozinha no mundo
Só lhe restava, no fundo,
Achar que não era gente

P:
Vivendo num ambiente
Onde a religião
Era um forte componente
Para sua formação
Sem qualquer perspectiva
Sem pai, sem mãe, à deriva
Vivia em oração

N:
Obediente e prendada
Servia ao sacerdote
Vivia como agregada
Em Juazeiro do Norte
Na casa do Padim Ciço
Jovem, ainda no viço
Pranteava sua sorte

P:
Dizem que foi artesã
De muita habilidade
Contudo não era sã
Sofria de enfermidade
Espasmos, melancolia
Perturbação, anemia
Foi sua realidade

N:
Muitas vezes recebia
Certas manifestações
Cristo e a Virgem Maria
Em muitas ocasiões
Surgiram na frente dela
Na camarinha a donzela
Via tias aparições

N:
Às vezes não entendia
Chegou a se rebelar
O Padre Ciço dizia:
Maria vá comungar
Orava com muita fé
Aquela simples mulher
Cuja história vou contar

P:
Com nove anos de idade
Ficou sozinha na terra
Viveu sua mocidade
Ali pertinho da serra
Da Chapada do Araripe
Porém nunca andou de jipe
Mas soube onde o bode berra

N:
Tinha suas turbulências
Seus agitos buliçosos
Ouvia maledicências
Dos ‘espritos’ invejosos
O seu corpo tumefacto
Fazia lembrar um cacto
Daqueles mais escabrosos

N:
Recebia muito insight
Muita sincronicidade
Às vezes dentro da night
Clamava por piedade
Era um ser especial
Etecetra e coisa e tal
Dentro daquela cidade

P:
Isto já era comum
E o Padre aconselhava
A que fizesse jejum
E água benta lhe dava
Ela a Jesus se entregou
Por esposo ela o tomou
E já não se lamentava

N:
Como ela, outras beatas
Viviam desse fervor
Eram todas celibatas
Sublimavam seu amor
Moral e religião
Para evitar que o cão
Atentasse a vida em flor

N:
Assim o tempo corria
Nas terras do Juazeiro
O cenário que havia
Chamavam de tabuleiro
Mandacaru, xiquexique
Casinhas de pau-a-pique
Muita novena e romeiro

V:
Muita vela e lamparina
Muita cabaça e quartinha
Donzelas e vitalinas
Muita cumade e madinha
Menino tinha em magote
Na feira vendiam pote
Mii e saca de farinha

V:
Jumento pra todo lado
Chapéu, arreio e gibão
Um coronel potentado
Uma cúia de algodão
Uma muié dando a luz
Fazendo o sinal da cruz
Parindo mais um cristão

V:
A vida ali era assim
No mei dos pé de Juá
Celebrava meu padim
E as beata a rezar
Às veiz uma desavença
Dispois uma penitença
E tudo vortava ao normá

P:
Até que chegou o dia
Da dita transformação
Na hora da eucaristia
No meio da multidão
A hóstia ensangüentada
A besta extasiada
Deu-se o ‘milagre’ então

N:
A partir deste instante
O padre é taumaturgo
Fanatismo militante
Do bispo veio o expurgo
Maria não é ouvida
Chega a ser preterida
No famigerado burgo

P:
Volúpia religiosa?
Nirvana espiritual?
Orgia miraculosa?
Gozo uxório-marginal?
Ápice-leigo-evangelista?
Fetiche-romão-batista?
Ou menstruação bucal?

N:
Tantas interrogações
Nas mentes episcopais
Em suas lucubrações
Se masturbavam os tais
Hereges e dogmáticos
Abutres neo-carismáticos
Médicos e maiorais

P:
Investigação ferrenha
Sindicante apuração
Neste fogo muita lenha
Botava o bispo então
Para provar o engodo
Chafurdava ele no lodo
Do sangue da comunhão

P:
O alvo era o vigário
Que ganhava posição
Com aquele relicário
De grande repercussão
O poder ameaçado
O bispo horrorizado
Queria a tal suspensão

N:
E assim tudo se deu
O padre foi impedido
A igreja entendeu
Que aquilo era um perigo
Mas a beata coitada
Já andava acabrunhada
Longe do seu velho abrigo

V:
Levaro ela pro Crato
Pra casa de Caridade
Inzageraro no ato
Num tinha nicissidade
Improibiro de falá
Vivia a pobe a orá
Foi grande a iniqüidade

P:
Deixaram ela reclusa
(prisão domiciliar)
Que história obtusa
Não podemos aceitar
A beata inconsolada
Sofria, ali calada
À revelia, a penar

N:
Um tribunal de exceção
Um caça à bruxa devota
Vejam que situação
O padre era poliglota
Ela, coitada, nem lia
Tampouco ela sabia
Que o poder tudo esgota

N:
Desde então deprimida
Orava, orava e orava
Assim findava a vida
Tristonha, muda, calada
Depois que foi sepultada
Cova vilipendiada!
Pra não lembrarem de nada

P:
Representava ameaça
A quem detinha o poder
Viveu para ser a caça
Nada mais podia ser
A hóstia não foi em vão
Vide a Meca do Sertão
Muito tem a nos dizer

N:
Rua Beata Maria
Num dos bairros populares
Quanta glória e honraria!
Nem andor e nem altares!
O teu lugar na história
Que perecível memória!
Não coube em nossos lares

N:
O teu bendito beata
Belisca a hóstia de trigo
Teu sangue no pano-ata
Faz medo qual papa-figo
A tua beatitude
De pé rachado e rude
Tá no meu sangue e não digo

V:
Num digo que sou beata
Num digo que eu sou tu
Mas digo que tu faz farta
Quando tempero o angu
Pru que eu sinto o sabô
Da hóstia que dismanchô
Do pão que tu comeu cru

N:
Eu faço um falso bendito
Uma cantiga enjoada
Enquanto faço acredito
A vida é uma embolada
Quantas beatas-maria
Eu vejo aqui hoje em dia
Mudando a história contada

Todos: (ritmo de embolada)

Eu bato o pé e beato
Beato batendo o pé
Batendo o pé eu desato
No ato eu boto fé
Me bato em penitença
Punindo a história pensa
Que torta quebra meu pé

Batendo palma beato
Batendo bolo também
Batendo pano no ato
Batendo roupa e xerém
Beato meu beabá
Beato até bodejá
Beato como ninguém

Beato e bato punheta
Bato baralho e beato
Beato e bato marreta
Bato carteira e beato
Bato sentado e em pé
Porém não bato em muié
Nem bato meu pau no gato

Beato e bato uma bola
Bato as asas e beato
Beato e vou a escola
Construo casa e beato
Beato pedindo esmola
Beato e bato a cachola
Beato e tiro retrato

(Ritmo de Bendito)

Beata, a ata, beata
Desata a ata beata
Beata, beá, beata
Bata beata a bata
E bata beata a ata
Beata ata e bata
Beata ata e teatra!

Teatra a ata beata
Desata a ata e bata
Beata a bata beata
Bata beata a bata
E bata a ata beata
Beata bea beata
Teatra, beata e ata!

Um comentário:

Mano Grangeiro disse...

Olá,
sou Mano Grangeiro, de Juazeiro do Norte, Ce, amigo de Salete, figura a quem adoro, admiro e chamo carinhosamente de "sal da terra". Fui o primeiro a transportar para o teatro os versos em cordel de Salete, quando, lá pelos idos de 2004, encenei com os integrantes do nucleo de estudos teatrais do SESC Juazeiro, o folheto intitulado "Mulheres de Juazeiro".
Esta encenação me rendeu uma honrosa citação da autora no cordel "Maria de Araujo...", quando ela diz "se MANO quiser encenar este cordel vai render". Muito grato Salete, pela confiança e atenção. Agora pretendo estudar este titulo na minha pesquisa de mestrado e, se Deus quiser e a Beata Maria de Araujo, ele vai render minha defesa e titulação com distinção e louvor, além da minha imensa gratidão à querida amiga, guerreira dos versos, operária das letras, Salete Maria.