Cordelirando...

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

XICA MANICONGO: 1ª Travesti do Brasil


 

Conforme Mott pediu

Escrevo mais um cordel

Com base no que emergiu

Dos textos do bacharel

Cientista e professor

E grande pesquisador

Que inspira menestrel


Por isso, antes do tema

Que aqui devo tratar

Quero jogar alfazema

Para Mott perfumar

Pois ele honrou Tibira

Registrado em minha lira

Para o mundo declamar


Professor de todas nós

Decano do mundo gay

Expert em desatar nós

Tido por “fora-da-lei”

Por desmontar narrativas

De forma subversiva

Com ou sem o happy day


E graças às suas lentes

Seus estudos e palestras

É possível mudar mentes

E abrir mais uma fresta

Neste mundo opressor

Pra resgatar uma flor

E exaltá-la com festa


Com base em seus achados

De fonte documental

Conforme foi espichado

Em blog, vídeo e jornal

Consta que nesta Bahia

Uma diva afro exibia

Um corpo artesanal


Vivendo a mulheridade

Conforme lhe apetecia

Andava pela cidade

E por toda a cercania

Subindo pelas ladeiras

E descendo bem faceira

Sedutora à luz do dia


Assim, nesta ocasião

Falarei de uma mulher

Cuja vida é uma lição

De resistência e fé

Em outra sociedade

Onde não haja maldade

Contra quem é o que é


É sobre a Manicongo

Primeira trans do Brasil

Que nomeia um quilombo

Numa cidade do Rio

Chamada de Niterói

E que agora reconstrói

A história que se enrustiu


“Xica” é o seu prenome

E merece reverência!

Já que Francisco era o nome

Do qual se tem referência

Através de documentos

Que visavam julgamentos

Contrários à “excrescência”


No Congo ela nasceu

E de lá foi traficada

Conforme se sucedeu

Na América colonizada

No Brasil veio aportar

E escravizada por cá

Viveu irresignada


Seu corpo, campo político

De resistência e prazer

Chamado de sodomítico

Por quem detinha o poder

De ditar as etiquetas

E construir as vinhetas

Jamais deixou se render


Vivendo em Salvador

Lá no século dezesseis

Onde imperava o terror

E a falta de sensatez

Ela também enfrentou

Além de cansaço e dor

Ódio e estupidez


Conforme o pesquisador

Foi um homem branco e cristão

Quem logo a denunciou

Buscando condenação

Por se vestir de mulher

E transar de “marcha à ré”

Segundo a Inquisição


Considerando que as leis

Previam sérios castigos

Foi ela a bola da vez

Por representar perigo

Àquela sociedade

Cheia de moralidade

E produtora de inimigos


Por conta da “sodomia”

Aos olhos do europeu

E também da “feitiçaria”

Tida como um traço seu

Ela foi denunciada

À “Justiça Sagrada”

Mas nunca se arrependeu


A pena era de morte

Nos termos da Inquisição

Precisou ser muito forte

Frente à grande opressão

Já que teve a “má-sorte”

De não ter qualquer suporte

Ou rede de proteção


Diante do ocorrido

E tentando sobreviver

Não teve outro abrigo

Senão o de acolher

A “ordem de se aprumar”

E roupa de homem usar

Para evitar de morrer


Assim, passou a vestir

Apetrechos masculinos

Com a alma a inquirir

Para quem tocam os sinos?

Já que o colonialismo

Com racismo e sexismo

Sempre foram assassinos


Agindo em nome de Deus

Promoveram violências

Verdadeiros fariseus

Impuseram suas crenças

Via Código Penal

Que refletia a moral

Das tais “vossas excelências”


Que jamais compreenderam

O que é a diversidade

E sempre submeteram

Quem amava a liberdade

Como Xica Manicongo

Quimbanda em Reino do Congo

Ícone da irmandade


Sua travestilidade

Expressava sua cultura

Rica em identidades

Que marcaram sua figura

Raça e gênero diversos

Em contexto adverso

Era razão de tortura


Sua indócil sexualidade

Chocava o “Santo Ofício”

Dada sua feminilidade

Que era vista como vício

Imundície e desrespeito

Por isso deram um jeito

De entregá-la ao Sodalício


Sendo ela escravizada

Por sapateiro cristão

Defesa não lhe foi dada

Sob a argumentação

De que não tinha direitos

Dado ao alto preconceito

Contra os pretos de então


Pois sequer eram sujeitos

Dignos de humanidade

E o racismo era um conceito

Praga da sociedade

Tinha-se por natural

Que um “Santo Tribunal”

Violasse sem piedade


Em nome de um Direito

Que jamais gerou justiça

E tinha como preceito

Justificar a cobiça

Assim como a exploração

De toda uma nação

Por gente dita castiça


Portanto Xica foi alvo

Do que hoje é transfobia

E eu mesma já ressalvo

Possível anacronia

Mas o meu objetivo

É mostrar que segue vivo

O culto à eugenia


E para que a resistência

Possa construir ações

Com apoio da ciência

Que visa emancipações

Convém saber do passado

E resgatar o legado

De quem viveu transgressões


É urgente dizer ao mundo

Que Xica foi pioneira

De um grito que ecoa fundo

Nessa terra brasileira

Pois é sobre opressão

Morte e perseguição

Contra a turma babadeira


Por sua expressão de gênero

Quase foi a julgamento

Quando a palavra transgênero

Sequer tinha em pensamento

Mas a tra-ves-ti-li-da-de

Já andava pela cidade

Terra-mãe do barravento


Um tipo de samba-chula

Dos mestres da capoeira

Raiz de nossa cultura

Cantado em roda, na feira

Ou em casa de quem sambeia

E ao mesmo tempo semeia

Resiliência guerreira


Salve Xica Manicongo

Travesti de tempos idos

Linda em seu vestido longo

Feito de pano cingido

Viva seu andar faceiro

E seu gingar maceteiro

Que outrora foi proibido


Hoje ela é nome de rua

E virou prêmio também

Pra que o mundo usufrua

Da força que dela vem

Pois grande é seu legado

E precisa ser contado

Neste planeta e além


Majorie a rebatizou

Com o nome social

E muito colaborou

Para torná-la plural

Mostrando pra toda gente

De forma inteligente

Quem foi Xica, afinal


E a doutora Jaqueline

Também honrou Manicongo

Trazendo pra timeline

A grande diva do Congo

Tertuliana e demais

Botaram em seus canais

O que em meu verso prolongo


A trajetória de Xica

Em prosa e verso a granel

Quando o Brasil se complica

Num ranking muito cruel

Onde as pessoas trans

São alvo de mortes vãs

E os números ficam ao léu


São violências letais

Além de toda a opressão

Que não se tolera mais

E exige mais atenção

Da parte de governantes

E também de judicantes

Desta festiva nação


Já que nossa travesti

No carnaval é enredo

Do samba da Tuiuti

Escola que não tem medo

De mostrar que a Manicongo

Não é tema capiongo

Mas sim frondoso arvoredo


Vale a pena estimular

Que este país sem igual

Mais vezes possa ecoar

A voz do ser marginal

Que um dia foi obrigada

A abafar sua risada

Por ordem colonial


Que o samba faça justiça

Com alegria e paixão

Que nessa terra mestiça

O fogo brote do chão

Queimando os preconceitos

E aquecendo os direitos

Do litoral ao sertão


Que suas identidades

Possam ser vivenciadas

E que em toda cidade

As leis sejam respeitadas

Garantindo o transitar

Com as vestes que desejar

Sem jamais ser bloqueada


Que Xica seja lembrada

Em nome da liberdade

Pois ela foi acusada

Com bastante gravidade

Por ousar feminizar

O seu modo de expressar

A vida em comunidade


E antes de terminar

Reitero que é importante

A gente valorizar

O trabalho incessante

De quem constrói a ciência

Com base em sua vivência

De ser também militante


Essa história ficaria

Esquecida num porão

Dela ninguém saberia

Se não fosse pela mão

De um antropólogo viado

Mundialmente consagrado

No labor da escavação


Pois ele busca as fontes

E analisa os fatos

E vai recriando pontes

Onde antes era só mato

Evidências científicas

Insumos para políticas

Com bastante substrato


Em respeito à memória

De todas as travestis

Faço essa rima simplória

Para quem me pediu bis

Pois depois de Janaína

Com quem tomei cajuína

Descobri outros brasis


Mas não como os invasores

Que nesta terra chegaram

E sim com outros valores

Que muitas já aportaram

Sobre alianças e(m) lutas

E sobre novas condutas

Para mudar o cenário


Aqui termino o cordel

Com ânimo de aprendiz

Cumprindo o meu papel

Conforme outros que fiz

Querendo algo aportar

Ou apenas me expressar

Sem ocultar cicatriz.


Salvador, Bahia, 25/11/2024

Salete Maria da Silva

Cordelista e Professora da UFBA


sexta-feira, 8 de novembro de 2024

ASSÉDIO MORAL NO MUNDO ACÃODÊMICO: O CASO DA UFBA!


 ASSÉDIO MORAL NO MUNDO ACÃODÊMICO: O CASO DA UFBA!

 


Este cordel é um grito
Que precisa ecoar
Não pode ficar restrito
Preso em qualquer lugar
É pedido de socorro!
Mas também é um esporro
Em quem tenta nos calar


É um texto fruto da dor
E da indignação
Contra o psicoterror
- esta forma de opressão -
Que no mundo laboral
E na luta sindical
Merece muita atenção!


Leciono sobre o tema
Pesquiso e sofro também
Posso falar, sem problema
Em verso, prosa e além
Pois o assédio moral
Tem causado muito mal
Pra quem não lhe diz amém


Trata-se de uma conduta
De caráter abusivo
Que emerge na labuta
Em espaço educativo
Mas onde quer que se dê
Faz muita gente sofrer
De modo superlativo


Seja por hostilidades
Gestos ou comportamentos
Que atingem a dignidade
Do alvo em cada momento
Mexe com o emocional
No contexto funcional
Gera dor e sofrimento


Sobre causas/consequências
Existem alguns consensos
Nas variadas ciências
E seus estudos mais densos
Sobre múltiplos fatores
Todos favorecedores
De aguerridos dissensos


Porém nem todo conflito
Gera assédio moral
Mas o que deixa implícito
Que somente o maioral
Que concentra o poder
Pode, a seu bel-prazer,
Destruir o seu “rival”


É sobre dominação
Controle e violência
É sobre perseguição
Isolamento e ofensa
É sobre impunidade
Conivência e falsidade
Onde o assédio compensa


Desigualdade entre pares
Concorrem para a mazela
Privilégio seculares
Também promovem querelas
Além do autoritarismo
E do patrimonialismo
Que sempre deixam sequelas


Quando grupos hegemônicos
Se encastelam no poder
Com seus discursos icônicos
Que fazem o mundo tremer
Ninguém mais pode falar
E tampouco questionar
O que é preciso rever


Coitado de quem ousar
Tentar pedir transparência
Ou de quem sinalizar
Que há falta de coerência
Entre o dito e feito
Ou reivindicar direitos
Com firmeza e persistência


Muitas pesquisas existem
Sobre o modus operandi
E como os alvos resistem
Enquanto o terror se expande
E quais medidas tomar
Ou a quem denunciar
No seio da Casa Grande


No universo acadêmico
A prática é super comum
É fenômeno epidêmico
Não é mero zunzunzum
Na UFBA é alarmante
Pois os dados são gritantes
Mas não há socorro algum


Além dos casos que listo
No livro que eu lancei
Para falar sobre isto
Muitos anos estudei
Por isso posso dizer
Aqui é grande o sofrer
E sinceramente cansei!


Cansei de pedir que apurem
Os fatos que já narrei
E que a mim assegurem
Provar que há foras-da-lei
Que agem como bem querem
Em um núcleo de mulheres
Que são amigas do Rei


E como tal se autorizam
Perseguir e isolar
Quem elas não simpatizam
Ou não se deixa domar
Por membros da panelinha
Que formam a igrejinha
Onde ninguém pode entrar


Cansei de ser preterida
Excluída e massacrada
Mesmo frequente na lida
Raramente mencionada
Cansei de ser correria
Reclamando isonomia
E sendo a mais cancelada


Cansei de solicitar
Acesso a informações
Cansei de identificar
Manobras em decisões
Sobre banca de concurso
Sobre exclusão de discurso
Em várias reuniões


Cansei de questionar atas
Raramente fidedignas
Cansei de ouvir bravatas
Em nome de uma consigna
Cansei de ver feministas
Ferrando outras, às vistas
De quem ainda se indigna


Cansei do epistemicídio
- o eterno apagamento -
Usei do sincericídio
Quando chegou o momento
Cansei da inobservância
De regras d’outras instâncias
Em nome de um sacramento


Cansei de ter prejuízos
Em minha vida laboral
Enquanto vivem aos risos
Quem me persegue, afinal
Sendo que a Ouvidoria
Correição e Reitoria
Acham que tudo é normal


Cansei de ver conivência
Omissão e faz-de-conta
Para além de leniência
Que também é uma afronta
Ao sofrimento de quem
No jogo do vai e vem
Vive qual barata tonta


Diante de uma gestão
Que premia agressoras
E não faz apuração
Adequada e sem tesouras
Pois recorta o que convém
E arquiva com desdém
Denúncias já duradouras


Há falta de compromisso
Em enfrentar o problema
E um reitorado omisso
Só fortalece o esquema
De quem não quer resolver
Mas sim nos enlouquecer
Eis o seu estratagema


Sem ter a quem recorrer
Vítimas seguem descrentes
Umas pensando em morrer
Outras bastante doentes
Algumas se exonerando
Se aposentando ou migrando
Ou se tornando silentes


São estratégias diversas
Onde falta providência
É uma postura perversa
Onde se produz ciência
Às vítimas só sofrimento
À quem viola, incremento
Para nutrir prepotência


Falta o acolhimento
A empatia e o cuidado
E também o investimento
Em um projeto integrado
Dos setores entre si
Que às vítimas possam ouvir
Sem ficar do lado errado


Falta ver quem tem pautado
O problema há muito tempo
Ou quem tem vivenciado
Um inferno sem alento
Falta querer acabar
Um modus de triturar
Mentes em grande tormento


E por fim falta o apoio
Do sindicato omisso
Que agora em tempo de aboio
Finge que tem compromisso
Mas justo nesta eleição
As chapas mostram que estão
Com a “turma do deixa disso”.


De um lado, a chapa um
Pra quem deseja um abraço
E ganha um assédio comum
Cheio de fitas e laços
Do outro, a chapa dois
Do assédio feijão com arroz
Que eu já conheço um pedaço


Em ambas há “neinetes”
Pra quem quiser escolher
Dois lados de um cotonete
Pra quem aceita viver
Seguindo o mesmo jogo
Seja com água ou com fogo
O assédio não vai perder


Perdemos nós, suas vítimas,
Mas elas não perdem não
Pois sempre são as legítimas
Representantes dos sãos
Enquanto as encrenqueiras
Loucas, débeis, maloqueiras
Seguem gritando em vão


E lá se vão alguns anos
De uma luta inglória
Reitorado passa-pano
Premia e concede glória
Mantendo a velha estrutura
Nutrida pela cultura
Governança-predatória


Seja na Câmara Técnica
Ou instâncias decisórias
Discursam em nome ética
Com eloquente oratória
Todo mundo acomodado
Banhado e perfumado
Como é linda essa vitória!


Com assédio institucional
O desfecho é mais bonito
Pode até ser um sinal
De um futuro veredito
Onde toda a estrutura
Ganha mais envergadura
Contra a Maria Palito.


Eis o tal mundo Acãodêmico
Onde não há bem-estar
Onde quem fala é polêmico
Doente ou impopular
E as relações de poder
São uma máquina de moer
Quem ousar questionar


Porém em dia de festa
Falam em saúde mental
E fazem até seresta
Quando é chegado o Natal
No mais, é só violência
Que permeia a ciência
Que vai pra vida real


Antes fosse um pesadelo
Um sonho um tanto ruim
Mas esse é o modelo
E querem pra sempre assim
Discordo e não aceito
Por isso tô desse jeito
Nessa Torre de Marfim


Mas como uma outsider
- uma estrangeira lá dentro-
Que não sabe jogar spider
E nem ocupa o centro
Só quero que outras vítimas
Saibam que a luta é legítima
E há mais descontentamento


E que há outros feminismos
Que pensam um outro poder
Aquele poder de dentro
Que não deixa esmorecer
As vozes tão calejadas
Que jamais ficam caladas
Pois nascem com o alvorecer!


Salvador, 08/11, 2024.

Profa. Salete Maria/UFBA

segunda-feira, 25 de março de 2024

Coletânea: 30 anos de cordéis feministas e libertários - GRATUITA!



Recém saída do forno a Coletânea Cordelirando, obra comemorativa dos meus 30 anos de Cordéis feministas e libertários! Nossos agradecimentos a todas as pessoas que contribuíram para que esta obra viesse à luz e para que o seu acesso gratuito fosse possível. Quem  desejar colaborar para a produção do documentário, fique à vontade! Desfrutem das mais de 700 páginas de pura poesia.

Segue o link para acesso gratuito desta obra: 

Link para acesso ao livro!

At.te, Salete Maria. Salvador, 25/03/2024. 

Post script: em breve faremos recital coletivo virtual e presencialmente.
 

domingo, 10 de dezembro de 2023

Uma questão de Justiça?

Imagem: Google Imagens


Todo mundo está feliz
Com a notícia alvissareira
Das cotas de aprendiz
Para a “turma babadeira”[1]
Que o TêJóta Bahia
Anunciou com euforia
Como a conquista primeira


Primeira entre os tribunais
Do Cistema de Justiça
Que fala em “todos iguais”
Mas teve postura omissa
Ao largo de tantos anos
Em que gays eram profanos
E transgêneros mundiça


Sem dúvida, é um avanço
Uma conquista histórica
Da qual faremos balanço
Após a fase eufórica
Mas é preciso dizer
Que pra isto acontecer
A luta foi diaspórica


Pois houve o afastamento
De natureza forçada
De um magistrado sedento
Por ver a pauta adotada
No seio do tribunal
Que agora dá o aval
De “causa justa e adequada”


O joio foi separado
Do trigo que alimenta
Um Cistema autocentrado
Que sempre regulamenta
De forma impessoal
Asséptica e correcional
E com “postura isenta”


Depois de um quiprocó
Que gerou penalidades
E a cúpula agiu sem dó
Empatia ou boa-vontade
De abrir a discussão
E aprimorar a questão
“Dentro da legalidade”


Ainda que “o legal”
Seja eivado de exclusão
E o corpo institucional
Aprecie a discrição
Que enaltece o armário
Do qual um gay dito Mário
Saiu sem pedir perdão


Nossos estudos apontam
Que a dissidência é malvista
Pois outsiders afrontam
Ethos corporativistas
Seja errando ou acertando
Uma vez incomodando
A dissonância é malquista


Sobretudo no Estado
Em seu setor mais hermético
Onde “o outro” é rechaçado
Ou visto como herético
E as “novas teorias”
Quando encontram simpatia
Sofrem câmbios sincréticos


Mas não para promover
Mudanças estruturais
E sim para atender
Interesses maiorais
De forma utilitarista
Via discurso simplista
Para caber nos jornais


Assim tem acontecido
Com conceitos feministas
Com fundamentos tecidos
Em tradição marxista
E com outras epistemes
Que se convertem em memes
Flagrantemente racistas


Por isso que é importante
Saber a origem das lutas
Já que a qualquer instante
Batalhas ficam ocultas
Dentre outras narrativas
Muito mais celebrativas
De figuras impolutas


E como eu faço cordéis
Sobre seres invisíveis
Sobre os ditos infiéis
Aos sistemas corrompíveis
Mesmo feliz com a conquista
Não posso perder de vista
O lugar dos inaudíveis


Por isso quero lembrar
Que a ação afirmativa
Que estamos a celebrar
De forma mui efusiva
Teve também sua luta
Recheada de disputa
Nem sempre tão inclusiva


Afinal o embrião
Que gerou regulamentos
Nem sempre teve a atenção
Ou mesmo o acolhimento
Dos, hoje, pais da criança
Que nasceu da esperança
De quem segue em sofrimento


Resgatemos a história
Sem animus de heroísmo
Puxando pela memória
E fazendo paralelismo
Entre o jogo do poder
E o modo de proceder
De quem se joga no abismo


No começo deste ano
Um juiz gay avançou
O front do soberano
E o tribunal rejeitou
Um edital que dizia
Que em sua cercania
Excluídos tem valor


O juiz propugnava
Que o grupo élegêbêtê
Na Vara que coordenava
Pudesse se inscrever
Pra função de estagiário
Desde que legitimário
Do certame a se fazer


No edital redigido
Exclusivo para a sigla
Três vagas davam sentido
À inclusão pretendida
Conforme os indicadores
E os princípios reitores
Da ética da acolhida


Considerado absurdo
Seu projeto não vingou
Pois um juiz mais graúdo
De pronto o rechaçou
Alegando inconsistência
Pois via uma incoerência
Héteros fora do gol


Invocando competências
E políticas de gestão
Também o Cê-ene-jóta
Disse, na ocasião,
Que caberia ao Têjóta
Enquanto dono da bota
Pisar firme neste chão


Aí o caldo engrossou
E o tema-tabu saiu
Das hostes do tribunal
E muito repercutiu
Nas tais mídias sociais
Assim como nos jornais
Desta pátria-mãe-gentil


E como manda quem pode
E quem não pode resiste
Quem tem dente sempre morde
Quem não morde então persiste
O juiz foi processado
E “cautelarmente afastado”
Dentro deste enredo triste


Neste contexto o silêncio
Foi eloquente entre pares
Tal qual um pacto prudêncio
Noutros campos similares
Movimentos aguerridos
Núcleos antes destemidos
Nem um gemido aos mares


Nem mesmo autoridades
Que falam de exclusão
Heteronormatividade
E sistemas de opressão
Nadica de nada disse
Como se fosse tolice
Tratar da situação


E olhe que os Cistemas
Tem seus nichos específicos
Com estruturas e temas
Palestrantes magníficos
Mas diante da questão
“De conflitos de gestão”
Ninguém “escuta” o não dito


Que envolve identidades
E modos de se portar
Onde a domesticidade
É critério para estar
Em condição de respeito
Ou sujeito de direitos
Que mereça este lugar


Quem estuda abjeção
Gênero e sexualidades
Fazendo articulação
Com regimes de verdade
Olha pro Judiciário
E seus jogos de contrários
E percebe iniquidades


Ninguém em sã consciência
Nega o currículo oculto
Que orienta Excelências
A lerem seus estatutos
Recusando as rupturas
E acomodando em molduras
Tentativas de tumulto


Foi isto o que aconteceu
Seguindo um mesmo padrão
Pois muito já se escreveu
Sobre tal situação
Governamentalidade
Versus subjetividade:
Outras formas de prisão!
 

É assim que o mundo gira
E às vezes gira ao contrário
Agendas saem da mira
Mas voltam noutro cenário
E o que outrora era ruim
Agora recebe o “sim”
Num casamento em plenário


E em pleno “mês de pedágio”
O Tribunal aprovou
Nova política de estágio
Que ao “grupo T”contemplou
Mas quando aos jornais falaram
De modo algum mencionaram
O juiz que a inaugurou


Nem mesmo colegas dele
Fizeram qualquer menção
Nenhum reconhecimento
Na augusta ocasião
Em que foi anunciado
O decreto proclamado
Pelo gestor de plantão


Reconhecer os esforços
Pra promover a inclusão
E superar os caroços
Da tal discriminação
Requer jogo de cintura
Mas também outra postura
Que não endossa exclusão


Representatividade
Importa em qualquer lugar
Mas também honestidade
Pra história não apagar
Pois quem foi sempre excluído
Confere um grande sentido
À luta que quer travar


Como gênero-dissidentes
Poderão compreender
Uma política de cotas
Que não lhes dá a saber
Que houve um magistrado
Que agindo certo ou errado
Lutou para acontecer?


Aqui eu estou falando
De apagamento epistêmico
Pois o estou vivenciando
E o vejo a todo momento
Já que se trata de um fato
Onde o termo “ingrato”
Não dá conta do evento


O apagamento em questão
Quando ao queer destinado
Envolve a negação
Do esforço empregado
Assim como seu talento
Labor e conhecimento
Sempre invisibilizado


Gera o epistemicídio
Que consiste em aniquilar
O saber do “entendido”
Que de si ousa falar
E no caso do juiz
Ele arranhou o verniz
Do poder que quer brilhar


Eu menciono a medida
Que o tribunal adotou
E que deve ser aplaudida
Desde que haja o rigor
Em reconhecer a luta
E o contexto da disputa
Que o embrião gerou


Pois as lutas por direitos
Dos grupos minorizados
São pontilhadas de pleitos
E embates acalorados
Muita tensão e estresse
Pois jamais houve benesse
Da parte dos potentados


Assim foi com as mulheres
Que bravamente lutaram
Metendo suas colheres
Nos pactos que as ocultaram
E ao exigirem direitos
Mostraram os preconceitos
Que as inferiorizaram


Com outros grupos humanos
O mesmo aconteceu
Negros, migrantes, ciganos...
O Estado nada lhes deu
Tudo foi fruto de lutas
De delongadas disputas
Que a história sempre escondeu


Indígenas estão “em guerra”
Há mais de 500 anos
Por demarcação de terras
E contra tantos desmandos
Que agridem sua cultura
Mas deles cobram candura
No trato com “educandos”


Também demandam direitos
Idosos, pobres, doentes
Todos eles com seus pleitos
Que merecem outras lentes
Privados de liberdade
Lutam contra iniquidades
De autoridades silentes


Sem tetos e sem estudos
PCDs, desempregados
Já não temem os graúdos
Que comandam o Estado
Elevam a sua voz:
“Nada sobre nós sem nós”
E seguem encorajados


Mulheres negras, indígenas
Dos campos, mares, florestas
Tidas como alienígenas
Seguem alargando frestas
Nos espaços de poder
Onde as trans mal podem ver
Quem participa das festas


Por isto que é importante
Que a luta coletiva
Não pare um só instante
E siga bastante viva
Mas que também reconheça
Para que ninguém esqueça
Personagens decisivas


Tal qual o juiz Caymmi
Que ousou iniciar
Um projeto que imprime
Outro modo de pensar
Quando era do COGEN[2]
Ambicionou ir além
De um modo de gestionar


E considerando a proposta
Do juiz gay resistente
Que ousou fazer aposta
Para gênero-dissidentes
E em edital pioneiro
No Cistema brasileiro
Propôs estágio includente


Não seria o momento
De se educar gerações
Onde o reconhecimento
Seja uma prática sem senões?
Para que o grupo Tê
Possa entrar e perceber
Que não se impõe padrões


Será questão de justiça
Não esconder a história?
Ou vale deixá-la omissa
Dando a outros “a glória?”
Dizendo que o Tribunal
É o primeiro, afinal
Onde o Tê faz trajetória!


Cada qual use a cabeça
E pense com autonomia
Antes que o dia anoiteça
E eu termine esta elegia
Sobre direitos humanos
Que entre lutas e planos
Demanda nossa energia


E a justiça social
Mais “R” tem exigido
Dentro de um mundo plural
Isso faz muito sentido
Seja em Representação
Ou Redistribuição
Reconhecer é preciso!


Assim termino meu verso
Reconhecendo quem luta
Mesmo sendo controverso
E/ou falho em sua conduta
Posto que nem a Justiça
Sustentada por treliça
Tem razão absoluta!

Salete Maria

10 de dezembro de 2023



[1]Decreto judiciário nº 791, de 26 de outubro de 2023. Art. 16 ficam reservadas para pessoas trans (transexuais, transgêneros e travestis) o percentual de 5% (cinco por cento) das vagas oferecidas para o programa de que trata este decreto. Disponível em http://www7.tj.ba.gov.br/secao/lerpublicacao.wsp?tmp.id=32730

 

[2] Comissão para Promoção da Igualdade e Políticas Afirmativas em Questões de Gênero e Orientação Sexual (COGEN).