Cordelirando...

domingo, 10 de dezembro de 2023

Uma questão de Justiça?

Imagem: Google Imagens


Todo mundo está feliz
Com a notícia alvissareira
Das cotas de aprendiz
Para a “turma babadeira”[1]
Que o TêJóta Bahia
Anunciou com euforia
Como a conquista primeira


Primeira entre os tribunais
Do Cistema de Justiça
Que fala em “todos iguais”
Mas teve postura omissa
Ao largo de tantos anos
Em que gays eram profanos
E transgêneros mundiça


Sem dúvida, é um avanço
Uma conquista histórica
Da qual faremos balanço
Após a fase eufórica
Mas é preciso dizer
Que pra isto acontecer
A luta foi diaspórica


Pois houve o afastamento
De natureza forçada
De um magistrado sedento
Por ver a pauta adotada
No seio do tribunal
Que agora dá o aval
De “causa justa e adequada”


O joio foi separado
Do trigo que alimenta
Um Cistema autocentrado
Que sempre regulamenta
De forma impessoal
Asséptica e correcional
E com “postura isenta”


Depois de um quiprocó
Que gerou penalidades
E a cúpula agiu sem dó
Empatia ou boa-vontade
De abrir a discussão
E aprimorar a questão
“Dentro da legalidade”


Ainda que “o legal”
Seja eivado de exclusão
E o corpo institucional
Aprecie a discrição
Que enaltece o armário
Do qual um gay dito Mário
Saiu sem pedir perdão


Nossos estudos apontam
Que a dissidência é malvista
Pois outsiders afrontam
Ethos corporativistas
Seja errando ou acertando
Uma vez incomodando
A dissonância é malquista


Sobretudo no Estado
Em seu setor mais hermético
Onde “o outro” é rechaçado
Ou visto como herético
E as “novas teorias”
Quando encontram simpatia
Sofrem câmbios sincréticos


Mas não para promover
Mudanças estruturais
E sim para atender
Interesses maiorais
De forma utilitarista
Via discurso simplista
Para caber nos jornais


Assim tem acontecido
Com conceitos feministas
Com fundamentos tecidos
Em tradição marxista
E com outras epistemes
Que se convertem em memes
Flagrantemente racistas


Por isso que é importante
Saber a origem das lutas
Já que a qualquer instante
Batalhas ficam ocultas
Dentre outras narrativas
Muito mais celebrativas
De figuras impolutas


E como eu faço cordéis
Sobre seres invisíveis
Sobre os ditos infiéis
Aos sistemas corrompíveis
Mesmo feliz com a conquista
Não posso perder de vista
O lugar dos inaudíveis


Por isso quero lembrar
Que a ação afirmativa
Que estamos a celebrar
De forma mui efusiva
Teve também sua luta
Recheada de disputa
Nem sempre tão inclusiva


Afinal o embrião
Que gerou regulamentos
Nem sempre teve a atenção
Ou mesmo o acolhimento
Dos, hoje, pais da criança
Que nasceu da esperança
De quem segue em sofrimento


Resgatemos a história
Sem animus de heroísmo
Puxando pela memória
E fazendo paralelismo
Entre o jogo do poder
E o modo de proceder
De quem se joga no abismo


No começo deste ano
Um juiz gay avançou
O front do soberano
E o tribunal rejeitou
Um edital que dizia
Que em sua cercania
Excluídos tem valor


O juiz propugnava
Que o grupo élegêbêtê
Na Vara que coordenava
Pudesse se inscrever
Pra função de estagiário
Desde que legitimário
Do certame a se fazer


No edital redigido
Exclusivo para a sigla
Três vagas davam sentido
À inclusão pretendida
Conforme os indicadores
E os princípios reitores
Da ética da acolhida


Considerado absurdo
Seu projeto não vingou
Pois um juiz mais graúdo
De pronto o rechaçou
Alegando inconsistência
Pois via uma incoerência
Héteros fora do gol


Invocando competências
E políticas de gestão
Também o Cê-ene-jóta
Disse, na ocasião,
Que caberia ao Têjóta
Enquanto dono da bota
Pisar firme neste chão


Aí o caldo engrossou
E o tema-tabu saiu
Das hostes do tribunal
E muito repercutiu
Nas tais mídias sociais
Assim como nos jornais
Desta pátria-mãe-gentil


E como manda quem pode
E quem não pode resiste
Quem tem dente sempre morde
Quem não morde então persiste
O juiz foi processado
E “cautelarmente afastado”
Dentro deste enredo triste


Neste contexto o silêncio
Foi eloquente entre pares
Tal qual um pacto prudêncio
Noutros campos similares
Movimentos aguerridos
Núcleos antes destemidos
Nem um gemido aos mares


Nem mesmo autoridades
Que falam de exclusão
Heteronormatividade
E sistemas de opressão
Nadica de nada disse
Como se fosse tolice
Tratar da situação


E olhe que os Cistemas
Tem seus nichos específicos
Com estruturas e temas
Palestrantes magníficos
Mas diante da questão
“De conflitos de gestão”
Ninguém “escuta” o não dito


Que envolve identidades
E modos de se portar
Onde a domesticidade
É critério para estar
Em condição de respeito
Ou sujeito de direitos
Que mereça este lugar


Quem estuda abjeção
Gênero e sexualidades
Fazendo articulação
Com regimes de verdade
Olha pro Judiciário
E seus jogos de contrários
E percebe iniquidades


Ninguém em sã consciência
Nega o currículo oculto
Que orienta Excelências
A lerem seus estatutos
Recusando as rupturas
E acomodando em molduras
Tentativas de tumulto


Foi isto o que aconteceu
Seguindo um mesmo padrão
Pois muito já se escreveu
Sobre tal situação
Governamentalidade
Versus subjetividade:
Outras formas de prisão!
 

É assim que o mundo gira
E às vezes gira ao contrário
Agendas saem da mira
Mas voltam noutro cenário
E o que outrora era ruim
Agora recebe o “sim”
Num casamento em plenário


E em pleno “mês de pedágio”
O Tribunal aprovou
Nova política de estágio
Que ao “grupo T”contemplou
Mas quando aos jornais falaram
De modo algum mencionaram
O juiz que a inaugurou


Nem mesmo colegas dele
Fizeram qualquer menção
Nenhum reconhecimento
Na augusta ocasião
Em que foi anunciado
O decreto proclamado
Pelo gestor de plantão


Reconhecer os esforços
Pra promover a inclusão
E superar os caroços
Da tal discriminação
Requer jogo de cintura
Mas também outra postura
Que não endossa exclusão


Representatividade
Importa em qualquer lugar
Mas também honestidade
Pra história não apagar
Pois quem foi sempre excluído
Confere um grande sentido
À luta que quer travar


Como gênero-dissidentes
Poderão compreender
Uma política de cotas
Que não lhes dá a saber
Que houve um magistrado
Que agindo certo ou errado
Lutou para acontecer?


Aqui eu estou falando
De apagamento epistêmico
Pois o estou vivenciando
E o vejo a todo momento
Já que se trata de um fato
Onde o termo “ingrato”
Não dá conta do evento


O apagamento em questão
Quando ao queer destinado
Envolve a negação
Do esforço empregado
Assim como seu talento
Labor e conhecimento
Sempre invisibilizado


Gera o epistemicídio
Que consiste em aniquilar
O saber do “entendido”
Que de si ousa falar
E no caso do juiz
Ele arranhou o verniz
Do poder que quer brilhar


Eu menciono a medida
Que o tribunal adotou
E que deve ser aplaudida
Desde que haja o rigor
Em reconhecer a luta
E o contexto da disputa
Que o embrião gerou


Pois as lutas por direitos
Dos grupos minorizados
São pontilhadas de pleitos
E embates acalorados
Muita tensão e estresse
Pois jamais houve benesse
Da parte dos potentados


Assim foi com as mulheres
Que bravamente lutaram
Metendo suas colheres
Nos pactos que as ocultaram
E ao exigirem direitos
Mostraram os preconceitos
Que as inferiorizaram


Com outros grupos humanos
O mesmo aconteceu
Negros, migrantes, ciganos...
O Estado nada lhes deu
Tudo foi fruto de lutas
De delongadas disputas
Que a história sempre escondeu


Indígenas estão “em guerra”
Há mais de 500 anos
Por demarcação de terras
E contra tantos desmandos
Que agridem sua cultura
Mas deles cobram candura
No trato com “educandos”


Também demandam direitos
Idosos, pobres, doentes
Todos eles com seus pleitos
Que merecem outras lentes
Privados de liberdade
Lutam contra iniquidades
De autoridades silentes


Sem tetos e sem estudos
PCDs, desempregados
Já não temem os graúdos
Que comandam o Estado
Elevam a sua voz:
“Nada sobre nós sem nós”
E seguem encorajados


Mulheres negras, indígenas
Dos campos, mares, florestas
Tidas como alienígenas
Seguem alargando frestas
Nos espaços de poder
Onde as trans mal podem ver
Quem participa das festas


Por isto que é importante
Que a luta coletiva
Não pare um só instante
E siga bastante viva
Mas que também reconheça
Para que ninguém esqueça
Personagens decisivas


Tal qual o juiz Caymmi
Que ousou iniciar
Um projeto que imprime
Outro modo de pensar
Quando era do COGEN[2]
Ambicionou ir além
De um modo de gestionar


E considerando a proposta
Do juiz gay resistente
Que ousou fazer aposta
Para gênero-dissidentes
E em edital pioneiro
No Cistema brasileiro
Propôs estágio includente


Não seria o momento
De se educar gerações
Onde o reconhecimento
Seja uma prática sem senões?
Para que o grupo Tê
Possa entrar e perceber
Que não se impõe padrões


Será questão de justiça
Não esconder a história?
Ou vale deixá-la omissa
Dando a outros “a glória?”
Dizendo que o Tribunal
É o primeiro, afinal
Onde o Tê faz trajetória!


Cada qual use a cabeça
E pense com autonomia
Antes que o dia anoiteça
E eu termine esta elegia
Sobre direitos humanos
Que entre lutas e planos
Demanda nossa energia


E a justiça social
Mais “R” tem exigido
Dentro de um mundo plural
Isso faz muito sentido
Seja em Representação
Ou Redistribuição
Reconhecer é preciso!


Assim termino meu verso
Reconhecendo quem luta
Mesmo sendo controverso
E/ou falho em sua conduta
Posto que nem a Justiça
Sustentada por treliça
Tem razão absoluta!

Salete Maria

10 de dezembro de 2023



[1]Decreto judiciário nº 791, de 26 de outubro de 2023. Art. 16 ficam reservadas para pessoas trans (transexuais, transgêneros e travestis) o percentual de 5% (cinco por cento) das vagas oferecidas para o programa de que trata este decreto. Disponível em http://www7.tj.ba.gov.br/secao/lerpublicacao.wsp?tmp.id=32730

 

[2] Comissão para Promoção da Igualdade e Políticas Afirmativas em Questões de Gênero e Orientação Sexual (COGEN).

Uma homenagem Singela à Dona Socorro


 Uma singela homenagem para Dona Socorro Alencar (mãe de Sammyra Santana, amor meu) por ocasião de sua "viagem" para outro plano dessa jornada chamada vida, que  segue fluindo eternamente . Dona Socorro foi uma mulher profundamente devotada a sua família, amigos e vizinhos. O sentido da palavra "cuidar" foi experimentado e exercitado por ela do primeiro ao último dia de sua passagem por este planeta. Além de tudo, foi uma grande educadora da rede municipal e estadual de ensino em Juazeiro do Norte, Ceará, onde também exerceu a gestão da então "Delegacia de Ensino" e Secretaria de Educação, com zelo, rigor, maestria e espírito público. Por essas e outras, tantas pessoas tem testemunhos importantes e inspiradores a dar sobre ela. Neste cordel, meu objetivo foi registrar um pouco dessa caminhada e de minha admiração por essa professora que voltou à Casa do Pai no dia 14/10/2023. Sou grata!

Dona Socorro partiu
Mas seu legado ficou
Pois ela sempre agiu
Como Deus orientou
Zelando pela família
Para além da própria filha 
Pois a muitos agregou

Foi grande educadora
E atuou na gestão
Com garra foi defensora
Da paz e da união
Apostando nas crianças
Deixou-lhes como herança 
A fé na educação

Foi amada e querida
Por quem com ela cruzou
Aproveitou bem a vida 
E a muita gente ajudou
Parte deixando saudades 
E centenas de amizades
Que ela tão bem cultivou

Dentre os frutos que ficaram 
Tem sua filha Sammyra 
E parentes que a amaram 
E a honraram em vida 
Ficam seus ensinamentos
E os melhores momentos
De uma jornada colorida

Siga em paz, Dona Socorro
E obrigada por tudo 
E que Deus, neste retorno
Dê-lhe um abraço graúdo
Pois tu és merecedora
Pois fostes cultivadora
Da paz como conteúdo

Siga na luz, professora!
E tenhas um bom descanso
E que a Mãe-Consoladora
Dê à família o remanso
E com fé e gratidão
Mesmo na separação
Cultive o coração manso

Até outra ocasião
Em outro nível e espaço 
Sua vida não foi em vão
Pois teve régua e compasso
Mas não mediu seu amor 
Pois este lhe transbordou 
E eu lhe devolvo em abraço!

Abraço mesmo distante
Abraço agradecido
Abraço desconcertante
Abraço feito gemido 
Abraço de despedida
Abraço de uma atrevida
Que tem coração partido! 

Abraço de quem confia 
Que Deus contigo está 
Abraço de quem envia
Orações para acalmar 
O coração de tua filha 
Que seguindo a tua trilha 
Foi feita para amar! 

Salete Maria 
Salvador, Bahia
14/10/2023