Cordelirando...

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A DESFORRA DE BARTIRA

A mulher entrou na sala
E o mundo estremeceu
Estarrecida e sem fala
Logo ela reconheceu
Toda a gente da cidade
Que na oportunidade
Lamentava o que se deu

Viu Lena de Manezim
- sua comadre e amiga-
Marcela de seu Quinzim
- que adora fazer intriga -
Viu Chico de Soledade
Que outrora, na mocidade
Juntos colheram espiga

Viu os filhos e sobrinhos
O pai, a mãe, a irmã
Avistou uns rapazinhos
E algumas anciãs
Olhou e viu as vizinhas
Todas bem arrumadinhas
Naquela triste manhã

Viu o padre e o pastor
O delegado e o juiz
Viu também um professor
E um jovem aprendiz
Um faxineiro e um poeta
Um cantor e um atleta
Um louco e uma meretriz

Viu garçom e operário
Médico e agricultor
Um gay fora do armário
E a vendedora de flor
Viu com muita emoção
A vó com terço na mão
“Orando pro Redentor”

Viu mendigo e barão
Branco, negro e amarelo
Viu gigante e anão
Rico e pé de chinelo
Adulto, velho e criança
Mas se viu sem esperança
Quando bateram martelo

Nesta hora um senhor
Gritou “justiça”- em voz alta
Ao lado do promotor
- que vestia negra bata-
O juiz pediu silêncio
E convidou Inocêncio
Para então ler a ata

Jurados se levantaram
Com o semblante medonho
Todos ali se calaram
Ante o ritual tristonho
Da leitura da sentença
Onde quem tinha uma crença
Pedia que fosse sonho

O oficial tremia
E mal podia falar
Uma palavra dizia
Para depois se calar
Não conseguiu ler o texto
Pois conhecia o contexto
E começou a chorar

O juiz então chamou
O assistente mais novo
E este assim começou
- olhando bem para o povo:
Nesta pátria mãe gentil
Aos cinco dias de abril
Condeno a ladra dum ovo!

O veredito dizia
Em linguagem empolada
Que Bartira cumpriria
Uma pena delongada
Num tal regime fechado
Onde o sol nasce quadrado
E a pessoa sai mudada

O povo se entreolhou
E começou a vaiar
Então Bartira falou:
Seu juiz vá se lascar
Aqui ninguém é palhaço
O senhor solta o ricaço
E me prende em seu lugar?

Não pratiquei nenhum crime
Quando ‘um’ ovo peguei
Pois a dona faz regime
E eu apenas tomei
O tal ovo emprestado
Mas vi que tava galado 
Na hora que o fritei

Eu sequer usufruí
Do ovo a que tive acesso
Pois logo que o comi
Fiquei cheia de abcesso
Saiba que não sou bandida
Pois o que tenho é ferida
E isto não dá processo

A senhora está dizendo
Que o ovo estava gerado?
- interveio o promotor
num tom muito injuriado -
Pois agora complicou
Pois aborto praticou
Contra um feto malformado

Vejam isto, meus senhores,
E ilustres autoridades
Excelências e doutores
Habitantes da cidade
Este é o julgamento
De Bartira Sacramento
Este exemplo de bondade!

Ela, aqui, foi acusada
De furto qualificado
E consta que foi flagrada
Comendo o ovo afanado
Mas agora confessou
Que aborto praticou
Contra o pintinho esperado

Portanto ficou pior
A sua situação
E não podemos ter dó
Deste  ser sem coração
Esta assassina cruel
Será julgada no céu
E lá não terá perdão

Impediu que um nascituro
Enxergasse a luz do dia
Um neonato futuro
Que só traria alegria
Como galeto de sorte
Teria uma boa morte
E nos alimentaria

Justiça tem que ser feita
E a sociedade clama
Quero a prisão da sujeita
Quero seu nome na lama
Pois além de ser ladrona
Ela é também comelona
E ainda mais se ufana

Meritíssimo juiz
Fiel cumpridor da lei
A Carta Magna diz
Que nosso povo é rei
Nós ouvimos a comarca
Onde deixo a minha marca
E por quem me empenhei

Ao longo de vinte anos
Me dediquei ao mister
Mas estou fazendo planos
De voltar pra Jequié
E como fui democrata
Sei que esta gente é grata
E vai me aplaudir de pé

De repente uma velha
Que sentava ao fim da sala
Chamada Dona Amélia
- a vendedora de bala -
Disse: eu quero falar
Pois Bartira não é má
Mas o senhor é um mala

Tá pensando que a gente
É um bando de otário?
Quer prender a inocente
Com esse conto do vigário?
Bartira é desempregada
E só deu essa mancada
Porque não teve salário

Não teve estudo na vida
Nem teve oportunidade
Nem quem lhe desse guarida
Nesta tal “sociedade”
Que lhe nega um trabalho
E só lhe dá quebra galho
Pra lhe acusar de maldade

Eu não sou advogada
E nem conheço das leis
Mas foi grande a burrada
Que sua justiça fez
Condenando essa mulher
Por um ovinho qualquer
Pra ser a bola da vez

O juiz interrompeu
A fala da tal senhora
E o delegado a prendeu
Dando o flagrante na hora
Dizendo: foi desacato!
Ela fez espalhafato
E isso não se ignora

O doutor solicitou
Que a força policial
Evacuasse o setor
Interno do tribunal
E dali logo saiu:
“Pois se o júri decidiu,
Que se cumpra, afinal”

Bartira se levantou
E foi rodando à baiana
Olhando pro promotor
Como quem não se engana
Falou em alto e bom som
Como quem já tinha o dom
De desmascarar sacana:

Deixe de ser demagogo
E denuncie os prefeitos
Governadores e sogros
Que só vivem de mal feitos
Vá prender estes ministros
Que com seu jogo sinistro
Roubam o cidadão direito

Vá enquadrar os pilantras
Que usurpam o Erário
E ficam cantando mantras
Chamando o povo de otário
Em gabinetes de luxo
Bebendo e forrando o bucho
Com altíssimos salários

Porque o senhor não lê
O que diz minha defesa
Pra todo mundo saber 
O grau da minha pobreza
Por que a sua justiça
Não prende essa mundiça
Que destrói a natureza?

Que desmata a floresta
E saqueia o que é do povo
Que vive fazendo festa
E se elegendo de novo
Enganando a nação
Com tanta corrupção
Só porque não roubam ovo?

Eu pergunto: e esta gente
Quando irá para a cadeia?
O senhor acha decente
O povo viver na peia?
Se oriente, meu chapa
Se não você sai do mapa
Ou se enrosca na teia

Você se acha o gigante
Porque sempre ganha a briga
Mas seu grito retumbante
Só soa contra a formiga
Vá lutar contra o elefante
Tire essa roupa elegante
E mostre sua barriga

Tô indo para a cadeia
Porque furtei um ovinho
E porque tenho na veia
O sangue do zé povinho
Mas se eu fosse uma ministra
Que roubasse em sua vista
Você daria um jeitinho

Me enoja o seu direito
Suas leis e seu poder
O seu discurso perfeito
Para quem não sabe ler
A sua visão de mundo
Seu cérebro sujismundo
Quero é cuspir em você

Sou mais uma brasileira
Que está cansada de ver
Vocês falarem asneiras
Pensando que a gente crê
Na lábia que vocês tem
E não convence ninguém
Chega de teretetê

E já que estarei privada
Desta minha “liberdade”
Pois serei encarcerada
No auge da mocidade
Quero mais que vá pra porra
Essa Justiça de zorra
E sua podre verdade!

Que se danem os bacharéis
- os tais donos do poder-
Com reluzentes anéis
E terninhos demodê
Falando em juridiquês
A serviço do burguês
Botando pra nos foder

Mas eu hei de ver o dia
Que o povo vai acordar
E lutar por alforria
Contra essa justiça má
Que faz distinção de classe
Mas que vive de disfarce
Pra poder nos enganar

Tô indo, pois tô detida
Sob o poder do Estado
Eis agora a minha vida
Será fato consumado?
Nos vemos lá na masmorra
Ou na próxima desforra
Quando houver outro julgado!