Conforme Mott pediu
Escrevo mais um cordel
Com base no que emergiu
Dos textos do bacharel
Cientista e professor
E grande pesquisador
Que inspira menestrel
Por isso, antes do tema
Que aqui devo tratar
Quero jogar alfazema
Para Mott perfumar
Pois ele honrou Tibira
Registrado em minha lira
Para o mundo declamar
Professor de todas nós
Decano do mundo gay
Expert em desatar nós
Tido por “fora-da-lei”
Por desmontar narrativas
De forma subversiva
Com ou sem o happy day
E graças às suas lentes
Seus estudos e palestras
É possível mudar mentes
E abrir mais uma fresta
Neste mundo opressor
Pra resgatar uma flor
E exaltá-la com festa
Com base em seus achados
De fonte documental
Conforme foi espichado
Em blog, vídeo e jornal
Consta que nesta Bahia
Uma diva afro exibia
Um corpo artesanal
Vivendo a mulheridade
Conforme lhe apetecia
Andava pela cidade
E por toda a cercania
Subindo pelas ladeiras
E descendo bem faceira
Sedutora à luz do dia
Assim, nesta ocasião
Falarei de uma mulher
Cuja vida é uma lição
De resistência e fé
Em outra sociedade
Onde não haja maldade
Contra quem é o que é
É sobre a Manicongo
Primeira trans do Brasil
Que nomeia um quilombo
Numa cidade do Rio
Chamada de Niterói
E que agora reconstrói
A história que se enrustiu
“Xica” é o seu prenome
E merece reverência!
Já que Francisco era o nome
Do qual se tem referência
Através de documentos
Que visavam julgamentos
Contrários à “excrescência”
No Congo ela nasceu
E de lá foi traficada
Conforme se sucedeu
Na América colonizada
No Brasil veio aportar
E escravizada por cá
Viveu irresignada
Seu corpo, campo político
De resistência e prazer
Chamado de sodomítico
Por quem detinha o poder
De ditar as etiquetas
E construir as vinhetas
Jamais deixou se render
Vivendo em Salvador
Lá no século dezesseis
Onde imperava o terror
E a falta de sensatez
Ela também enfrentou
Além de cansaço e dor
Ódio e estupidez
Conforme o pesquisador
Foi um homem branco e cristão
Quem logo a denunciou
Buscando condenação
Por se vestir de mulher
E transar de “marcha à ré”
Segundo a Inquisição
Considerando que as leis
Previam sérios castigos
Foi ela a bola da vez
Por representar perigo
Àquela sociedade
Cheia de moralidade
E produtora de inimigos
Por conta da “sodomia”
Aos olhos do europeu
E também da “feitiçaria”
Tida como um traço seu
Ela foi denunciada
À “Justiça Sagrada”
Mas nunca se arrependeu
A pena era de morte
Nos termos da Inquisição
Precisou ser muito forte
Frente à grande opressão
Já que teve a “má-sorte”
De não ter qualquer suporte
Ou rede de proteção
Diante do ocorrido
E tentando sobreviver
Não teve outro abrigo
Senão o de acolher
A “ordem de se aprumar”
E roupa de homem usar
Para evitar de morrer
Assim, passou a vestir
Apetrechos masculinos
Com a alma a inquirir
Para quem tocam os sinos?
Já que o colonialismo
Com racismo e sexismo
Sempre foram assassinos
Agindo em nome de Deus
Promoveram violências
Verdadeiros fariseus
Impuseram suas crenças
Via Código Penal
Que refletia a moral
Das tais “vossas excelências”
Que jamais compreenderam
O que é a diversidade
E sempre submeteram
Quem amava a liberdade
Como Xica Manicongo
Quimbanda em Reino do Congo
Ícone da irmandade
Sua travestilidade
Expressava sua cultura
Rica em identidades
Que marcaram sua figura
Raça e gênero diversos
Em contexto adverso
Era razão de tortura
Sua indócil sexualidade
Chocava o “Santo Ofício”
Dada sua feminilidade
Que era vista como vício
Imundície e desrespeito
Por isso deram um jeito
De entregá-la ao Sodalício
Sendo ela escravizada
Por sapateiro cristão
Defesa não lhe foi dada
Sob a argumentação
De que não tinha direitos
Dado ao alto preconceito
Contra os pretos de então
Pois sequer eram sujeitos
Dignos de humanidade
E o racismo era um conceito
Praga da sociedade
Tinha-se por natural
Que um “Santo Tribunal”
Violasse sem piedade
Em nome de um Direito
Que jamais gerou justiça
E tinha como preceito
Justificar a cobiça
Assim como a exploração
De toda uma nação
Por gente dita castiça
Portanto Xica foi alvo
Do que hoje é transfobia
E eu mesma já ressalvo
Possível anacronia
Mas o meu objetivo
É mostrar que segue vivo
O culto à eugenia
E para que a resistência
Possa construir ações
Com apoio da ciência
Que visa emancipações
Convém saber do passado
E resgatar o legado
De quem viveu transgressões
É urgente dizer ao mundo
Que Xica foi pioneira
De um grito que ecoa fundo
Nessa terra brasileira
Pois é sobre opressão
Morte e perseguição
Contra a turma babadeira
Por sua expressão de gênero
Quase foi a julgamento
Quando a palavra transgênero
Sequer tinha em pensamento
Mas a tra-ves-ti-li-da-de
Já andava pela cidade
Terra-mãe do barravento
Um tipo de samba-chula
Dos mestres da capoeira
Raiz de nossa cultura
Cantado em roda, na feira
Ou em casa de quem sambeia
E ao mesmo tempo semeia
Resiliência guerreira
Salve Xica Manicongo
Travesti de tempos idos
Linda em seu vestido longo
Feito de pano cingido
Viva seu andar faceiro
E seu gingar maceteiro
Que outrora foi proibido
Hoje ela é nome de rua
E virou prêmio também
Pra que o mundo usufrua
Da força que dela vem
Pois grande é seu legado
E precisa ser contado
Neste planeta e além
Majorie a rebatizou
Com o nome social
E muito colaborou
Para torná-la plural
Mostrando pra toda gente
De forma inteligente
Quem foi Xica, afinal
E a doutora Jaqueline
Também honrou Manicongo
Trazendo pra timeline
A grande diva do Congo
Tertuliana e demais
Botaram em seus canais
O que em meu verso prolongo
A trajetória de Xica
Em prosa e verso a granel
Quando o Brasil se complica
Num ranking muito cruel
Onde as pessoas trans
São alvo de mortes vãs
E os números ficam ao léu
São violências letais
Além de toda a opressão
Que não se tolera mais
E exige mais atenção
Da parte de governantes
E também de judicantes
Desta festiva nação
Já que nossa travesti
No carnaval é enredo
Do samba da Tuiuti
Escola que não tem medo
De mostrar que a Manicongo
Não é tema capiongo
Mas sim frondoso arvoredo
Vale a pena estimular
Que este país sem igual
Mais vezes possa ecoar
A voz do ser marginal
Que um dia foi obrigada
A abafar sua risada
Por ordem colonial
Que o samba faça justiça
Com alegria e paixão
Que nessa terra mestiça
O fogo brote do chão
Queimando os preconceitos
E aquecendo os direitos
Do litoral ao sertão
Que suas identidades
Possam ser vivenciadas
E que em toda cidade
As leis sejam respeitadas
Garantindo o transitar
Com as vestes que desejar
Sem jamais ser bloqueada
Que Xica seja lembrada
Em nome da liberdade
Pois ela foi acusada
Com bastante gravidade
Por ousar feminizar
O seu modo de expressar
A vida em comunidade
E antes de terminar
Reitero que é importante
A gente valorizar
O trabalho incessante
De quem constrói a ciência
Com base em sua vivência
De ser também militante
Essa história ficaria
Esquecida num porão
Dela ninguém saberia
Se não fosse pela mão
De um antropólogo viado
Mundialmente consagrado
No labor da escavação
Pois ele busca as fontes
E analisa os fatos
E vai recriando pontes
Onde antes era só mato
Evidências científicas
Insumos para políticas
Com bastante substrato
Em respeito à memória
De todas as travestis
Faço essa rima simplória
Para quem me pediu bis
Pois depois de Janaína
Com quem tomei cajuína
Descobri outros brasis
Mas não como os invasores
Que nesta terra chegaram
E sim com outros valores
Que muitas já aportaram
Sobre alianças e(m) lutas
E sobre novas condutas
Para mudar o cenário
Aqui termino o cordel
Com ânimo de aprendiz
Cumprindo o meu papel
Conforme outros que fiz
Querendo algo aportar
Ou apenas me expressar
Sem ocultar cicatriz.
Salvador, Bahia, 25/11/2024
Salete Maria da Silva
Cordelista e Professora da UFBA
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