Cordelirando...

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

XICA MANICONGO: 1ª Travesti do Brasil


 

Conforme Mott pediu

Escrevo mais um cordel

Com base no que emergiu

Dos textos do bacharel

Cientista e professor

E grande pesquisador

Que inspira menestrel


Por isso, antes do tema

Que aqui devo tratar

Quero jogar alfazema

Para Mott perfumar

Pois ele honrou Tibira

Registrado em minha lira

Para o mundo declamar


Professor de todas nós

Decano do mundo gay

Expert em desatar nós

Tido por “fora-da-lei”

Por desmontar narrativas

De forma subversiva

Com ou sem o happy day


E graças às suas lentes

Seus estudos e palestras

É possível mudar mentes

E abrir mais uma fresta

Neste mundo opressor

Pra resgatar uma flor

E exaltá-la com festa


Com base em seus achados

De fonte documental

Conforme foi espichado

Em blog, vídeo e jornal

Consta que nesta Bahia

Uma diva afro exibia

Um corpo artesanal


Vivendo a mulheridade

Conforme lhe apetecia

Andava pela cidade

E por toda a cercania

Subindo pelas ladeiras

E descendo bem faceira

Sedutora à luz do dia


Assim, nesta ocasião

Falarei de uma mulher

Cuja vida é uma lição

De resistência e fé

Em outra sociedade

Onde não haja maldade

Contra quem é o que é


É sobre a Manicongo

Primeira trans do Brasil

Que nomeia um quilombo

Numa cidade do Rio

Chamada de Niterói

E que agora reconstrói

A história que se enrustiu


“Xica” é o seu prenome

E merece reverência!

Já que Francisco era o nome

Do qual se tem referência

Através de documentos

Que visavam julgamentos

Contrários à “excrescência”


No Congo ela nasceu

E de lá foi traficada

Conforme se sucedeu

Na América colonizada

No Brasil veio aportar

E escravizada por cá

Viveu irresignada


Seu corpo, campo político

De resistência e prazer

Chamado de sodomítico

Por quem detinha o poder

De ditar as etiquetas

E construir as vinhetas

Jamais deixou se render


Vivendo em Salvador

Lá no século dezesseis

Onde imperava o terror

E a falta de sensatez

Ela também enfrentou

Além de cansaço e dor

Ódio e estupidez


Conforme o pesquisador

Foi um homem branco e cristão

Quem logo a denunciou

Buscando condenação

Por se vestir de mulher

E transar de “marcha à ré”

Segundo a Inquisição


Considerando que as leis

Previam sérios castigos

Foi ela a bola da vez

Por representar perigo

Àquela sociedade

Cheia de moralidade

E produtora de inimigos


Por conta da “sodomia”

Aos olhos do europeu

E também da “feitiçaria”

Tida como um traço seu

Ela foi denunciada

À “Justiça Sagrada”

Mas nunca se arrependeu


A pena era de morte

Nos termos da Inquisição

Precisou ser muito forte

Frente à grande opressão

Já que teve a “má-sorte”

De não ter qualquer suporte

Ou rede de proteção


Diante do ocorrido

E tentando sobreviver

Não teve outro abrigo

Senão o de acolher

A “ordem de se aprumar”

E roupa de homem usar

Para evitar de morrer


Assim, passou a vestir

Apetrechos masculinos

Com a alma a inquirir

Para quem tocam os sinos?

Já que o colonialismo

Com racismo e sexismo

Sempre foram assassinos


Agindo em nome de Deus

Promoveram violências

Verdadeiros fariseus

Impuseram suas crenças

Via Código Penal

Que refletia a moral

Das tais “vossas excelências”


Que jamais compreenderam

O que é a diversidade

E sempre submeteram

Quem amava a liberdade

Como Xica Manicongo

Quimbanda em Reino do Congo

Ícone da irmandade


Sua travestilidade

Expressava sua cultura

Rica em identidades

Que marcaram sua figura

Raça e gênero diversos

Em contexto adverso

Era razão de tortura


Sua indócil sexualidade

Chocava o “Santo Ofício”

Dada sua feminilidade

Que era vista como vício

Imundície e desrespeito

Por isso deram um jeito

De entregá-la ao Sodalício


Sendo ela escravizada

Por sapateiro cristão

Defesa não lhe foi dada

Sob a argumentação

De que não tinha direitos

Dado ao alto preconceito

Contra os pretos de então


Pois sequer eram sujeitos

Dignos de humanidade

E o racismo era um conceito

Praga da sociedade

Tinha-se por natural

Que um “Santo Tribunal”

Violasse sem piedade


Em nome de um Direito

Que jamais gerou justiça

E tinha como preceito

Justificar a cobiça

Assim como a exploração

De toda uma nação

Por gente dita castiça


Portanto Xica foi alvo

Do que hoje é transfobia

E eu mesma já ressalvo

Possível anacronia

Mas o meu objetivo

É mostrar que segue vivo

O culto à eugenia


E para que a resistência

Possa construir ações

Com apoio da ciência

Que visa emancipações

Convém saber do passado

E resgatar o legado

De quem viveu transgressões


É urgente dizer ao mundo

Que Xica foi pioneira

De um grito que ecoa fundo

Nessa terra brasileira

Pois é sobre opressão

Morte e perseguição

Contra a turma babadeira


Por sua expressão de gênero

Quase foi a julgamento

Quando a palavra transgênero

Sequer tinha em pensamento

Mas a tra-ves-ti-li-da-de

Já andava pela cidade

Terra-mãe do barravento


Um tipo de samba-chula

Dos mestres da capoeira

Raiz de nossa cultura

Cantado em roda, na feira

Ou em casa de quem sambeia

E ao mesmo tempo semeia

Resiliência guerreira


Salve Xica Manicongo

Travesti de tempos idos

Linda em seu vestido longo

Feito de pano cingido

Viva seu andar faceiro

E seu gingar maceteiro

Que outrora foi proibido


Hoje ela é nome de rua

E virou prêmio também

Pra que o mundo usufrua

Da força que dela vem

Pois grande é seu legado

E precisa ser contado

Neste planeta e além


Majorie a rebatizou

Com o nome social

E muito colaborou

Para torná-la plural

Mostrando pra toda gente

De forma inteligente

Quem foi Xica, afinal


E a doutora Jaqueline

Também honrou Manicongo

Trazendo pra timeline

A grande diva do Congo

Tertuliana e demais

Botaram em seus canais

O que em meu verso prolongo


A trajetória de Xica

Em prosa e verso a granel

Quando o Brasil se complica

Num ranking muito cruel

Onde as pessoas trans

São alvo de mortes vãs

E os números ficam ao léu


São violências letais

Além de toda a opressão

Que não se tolera mais

E exige mais atenção

Da parte de governantes

E também de judicantes

Desta festiva nação


Já que nossa travesti

No carnaval é enredo

Do samba da Tuiuti

Escola que não tem medo

De mostrar que a Manicongo

Não é tema capiongo

Mas sim frondoso arvoredo


Vale a pena estimular

Que este país sem igual

Mais vezes possa ecoar

A voz do ser marginal

Que um dia foi obrigada

A abafar sua risada

Por ordem colonial


Que o samba faça justiça

Com alegria e paixão

Que nessa terra mestiça

O fogo brote do chão

Queimando os preconceitos

E aquecendo os direitos

Do litoral ao sertão


Que suas identidades

Possam ser vivenciadas

E que em toda cidade

As leis sejam respeitadas

Garantindo o transitar

Com as vestes que desejar

Sem jamais ser bloqueada


Que Xica seja lembrada

Em nome da liberdade

Pois ela foi acusada

Com bastante gravidade

Por ousar feminizar

O seu modo de expressar

A vida em comunidade


E antes de terminar

Reitero que é importante

A gente valorizar

O trabalho incessante

De quem constrói a ciência

Com base em sua vivência

De ser também militante


Essa história ficaria

Esquecida num porão

Dela ninguém saberia

Se não fosse pela mão

De um antropólogo viado

Mundialmente consagrado

No labor da escavação


Pois ele busca as fontes

E analisa os fatos

E vai recriando pontes

Onde antes era só mato

Evidências científicas

Insumos para políticas

Com bastante substrato


Em respeito à memória

De todas as travestis

Faço essa rima simplória

Para quem me pediu bis

Pois depois de Janaína

Com quem tomei cajuína

Descobri outros brasis


Mas não como os invasores

Que nesta terra chegaram

E sim com outros valores

Que muitas já aportaram

Sobre alianças e(m) lutas

E sobre novas condutas

Para mudar o cenário


Aqui termino o cordel

Com ânimo de aprendiz

Cumprindo o meu papel

Conforme outros que fiz

Querendo algo aportar

Ou apenas me expressar

Sem ocultar cicatriz.


Salvador, Bahia, 25/11/2024

Salete Maria da Silva

Cordelista e Professora da UFBA


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