Eu já perdi foi a
conta
Das vezes que
perguntaram
Como foi que começou
E que fatos
inspiraram
O meu cordel
feminista
Que inaugurou a
lista
De tantos que se
somaram
Como já disse
outras vezes
Em entrevistas que
dei
Eu nasci numa
família
Onde o cordel era
rei
Pois meu clã
analfabeto
Tinha um baú
repleto
E declamar era a lei
Meu avô ia pra
feira
Comprar farinha e
feijão
Levava um saco de
pano
E um dinheirinho na
mão
Trazia o fumo e o
folheto
E voltava satisfeito
Nas quebradas do
sertão
Na casa que ele
morava
Somente uma pessoa
lia
Mas muita gente
sentava
Para escutar minha
tia
Lendo versos a
granel
De príncipe e
coronel
E do valente Zé
Garcia
Quando eu me
alfabetizei
Minha avó me
intimava
Ela queria testar
O que minha mãe
contava
De que eu lia
perfeito
E sabia ler dum
jeito
Que a todo mundo
encantava
Eu era muito criança
E sentava ali no
chão
Rodeada de folhetos
De história de
Lampião
De soldado e
imperador
De santo e de doutor
Só tinha homem
então
E quem mais
apreciava
Era minha vovozinha
Que sempre me
convidava
Para ler lá na
cozinha
E ao debulhar o
feijão
Ou ao socar o pilão
Um verso sempre
convinha
Ela sabia de cor
Todo folheto que eu
lia
E ao varrer o
terreiro
Uns versos ela fazia
Falava sempre de
amor
De fome, fé e calor
Filhos, roça e
romaria
E eu amava essa avó
De nome Maria José
Que além de
encantadora
Era uma pessoa de fé
Que me ensinava a
ler
Mesmo sem ela saber
Como se escreve mulher
Então eu me
perguntava
Por que não fazer
um verso
Já que em todo
folheto
Do homem era o
universo
E lá pela
adolescência
Já com outra
consciência
Trouxe à tona o
controverso
Eu nasci lá em São
Paulo
Em face do êxodo
rural
E meus pais sempre
migravam
Quando as coisas iam
mal
Do sudeste ao Ceará
E eu sempre ia parar
Naquele velho
quintal
Foi assim por muito
tempo
Da metrópole ao
sertão
Folhetos iam comigo
Em toda ocasião
Na escola nunca os
li
E daí eu resolvi
Lançar meus versos
então
Há tempos eu
escrevia
Porém nunca
publicava
Assumi a ideologia
E por ela militava
Feminista-socialista
Isso já dá uma
pista
Do que a mente
tramava
Eu sequer tinha
dinheiro
Para publicar cordel
Morava em Juazeiro
Onde há folheto a
granel
A maioria machista
Racista ou
direitista
Cumprindo triste
papel
Ali eu era estudante
E também
trabalhadora
Além de ser
militante
De causas
libertadoras
Diante de opressão
Violência e omissão
Lancei rima
transgressora
Então no século
vinte
No ano noventa e
quatro
Eu dei à luz uma
filha
E pari no mesmo ato
O meu primeiro
cordel
Publicado em papel
De tradicional
formato
Esse é o primeiro
folheto
Segundo as
pesquisadoras
Que denuncia o
machismo
De forma
arrebatadora
Falando de violência
E propondo
resistência
Contra a cultura
opressora
Trata-se de um
manifesto
Contra o patriarcado
Publicado numa terra
Onde muitas tem
lutado
Contra a frequente
matança
De mulher e de
criança
Que tem nos
mobilizado
Foi assim que
inauguramos
O feminismo em
cordel
E assim continuamos
Rimando embaixo do
céu
São muitos os
exemplares
Que já atravessam
mares
Cumprindo o seu
papel
Vale dizer que a
ideia
Era então dialogar
Com as mulheres do
povo
Lá no sul do Ceará
Onde eu distribuía
Até mesmo em
romaria
Quando eu vivia por
lá
Com os meus parcos
recursos
Eu custeava os
cordéis
Usava em minicursos
Até entre bacharéis
Mas foi para
estimular
Feminismo popular
Que eu ampliei o
viés
Como nasci em favela
Filha de uma mulher
preta
Trouxe a questão da
classe
Descrita pela caneta
E o tenebroso
racismo
Que com o
capitalismo
Compõe a velha
roleta
Assim narrei as
histórias
Das mulheres
oprimidas
Também registrei as
glórias
Das que curaram
feridas
Mulheres empoderadas
Que ao longo da
caminhada
Vão avançando na
vida
Discuti o oito de
março
E a condição das
mulheres
Que vão se
organizando
E metendo suas
colheres
Nos espaços de
poder
De arte e de saber
Mudando caracteres
No Cariri cearense
Onde tudo começou
Pela voz de outras
mulheres
Minha rima se
espalhou
Foi pro teatro e
cinema
Virando até novena
Dedicado ao meu amor
O cordel “Maria
Helena”
E o “Lesbecause”
também
Eu fiz pensando na
cena
Do ato de querer bem
Entre duas lesbianas
Que ralam xana com
xana
E ainda dizem amém
Além destes muitos
outros
Como o “Lugar de
Mulher”
Ou mesmo o “Mulheres
Fazem”
Ou “O que é ser
mulher?”
Tem sobre cidadania
E também biografias
Tem cordel pra quem
quiser
E lá se vão mais
de cem
Somente sobre este
tema
Rimo ao que a vida
convém
Este é meu
estratagema
Pra debelar o
machismo
Racismo e
capitalismo
Enquanto estiver em
cena
Meus cordéis vão
por aí
Cumprindo sua missão
Na casa de Dona
Joana
Ou naquela
intervenção
Que as jovens estão
fazendo
E com ela se
atrevendo
Ao machismo dizer
não
E para se espalhar
mais
Do que já tem
circulado
Em revistas e
jornais
E em tese de
doutorado
Minha querida
Sammyra
Que é amante da
lira
Criou um blog
engajado
O “sítio”
Cordelirando
Na página da web
Onde ela vai
postando
Tudo que essa doida
escreve
Permite que minha
rima
Atraia feito um ímã
Todo mundo em tempo
breve
Mas vale a pena
lembrar
Que lá no ano dois
mil
Um grupo de
cordelistas
Pelo Cariri surgiu
Denominado Mauditos
Quebrando os
interditos
E abalando o Brasil
Do grupo também fiz
parte
E com ele me somei
Foi algo novo pra
arte
E ali muito avancei
E o meu cordel
feminista
Consolidou a
conquista
Da qual muito me
orgulhei
Então mais
recentemente
Já em dois mil e
catorze
Algo marcou minha
mente
E melhorou minha
pose
Pois um conjunto de
amiga
Que comigo se
interliga
Deram-me uma
apoteose
Celebraram os vinte
anos
Do meu modo de rimar
Foi o ato mais
humano
Que pude
experimentar
Amizade e muito amor
O Cariri preparou
Para a data
registrar
Eu fiquei muito
feliz
Vendo minhas
companheiras
Ali perto da Matriz
Numa festa
alvissareira
Feita com tanto
carinho
Do qual provei o
gostinho
Numa noite
prazenteira
Foi mais ou menos
assim
Que a coisa começou
E cresceu devagarim
Até que se espalhou
Pois meu
cordel-feminista
E anticapitalista
É o que tenho de
valor
Depois de mim outras
rimas
Começaram a
deslanchar
E eu fico muito
contente
Pois gosto de
estimular
Pois quanto mais é
melhor
Pra eu não me
sentir só
Neste meu cordelirar
Mas por questão de
justiça
Eu reconheço a
matriz
Pois ela foi a
primeira
Cordelista de raiz
Que me inspirou
nesta vida
Me dando amor e
comida
E rima pra eu ser
feliz
A velha Maria José
La do sul do Ceará
Mulher de fibra e de
fé
Que nunca pode
estudar
Foi o ser que me
ensinou
E o meu cordel só
brotou
Porque ela soube
aguar
Amante da tradição
De cordéis
masculinistas
Foi ela a inspiração
Para a neta
feminista
Sem ela eu nada
seria
Dela eu herdei
energia
Para virar
cordelista
Em resumo foi assim
Que a coisa
aconteceu
Não houve antes de
mim
Um cordel igual ao
meu
Onde as mulheres
existem
E dia a dia insistem
Em ocupar o que é
seu
Por isso é que todo
mês
Pras Deusas faço
meu verso
Para agradecer à
Fonte
Onde o Verbo está
imerso
Minha avó, minha
heroína
Eu sigo sendo a
menina
Que ama teu Universo
Salete Maria
Abril/2015
2 comentários:
Belíssimo cordel!
Embora soubesse o que era um cordel, tive contato com ele faz pouco tempo.
Fiz para uma das minhas matérias da faculdade uma reportagem e me apaixonei.
Essa arte é incrível e seu cordel é apaixonante!!!
Parabéns!!!
Como todos os seus cordéis - show! Parabéns professora Salete Maria.
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