Cordelirando...

sábado, 25 de abril de 2015

FEMINISMO EM CORDEL: como foi que começou?



Eu já perdi foi a conta
Das vezes que perguntaram
Como foi que começou
E que fatos inspiraram
O meu cordel feminista
Que inaugurou a lista
De tantos que se somaram

Como já disse outras vezes
Em entrevistas que dei
Eu nasci numa família
Onde o cordel era rei
Pois meu clã analfabeto
Tinha um baú repleto
E declamar era a lei

Meu avô ia pra feira
Comprar farinha e feijão
Levava um saco de pano
E um dinheirinho na mão
Trazia o fumo e o folheto
E voltava satisfeito
Nas quebradas do sertão

Na casa que ele morava
Somente uma pessoa lia
Mas muita gente sentava
Para escutar minha tia
Lendo versos a granel
De príncipe e coronel
E do valente Zé Garcia

Quando eu me alfabetizei
Minha avó me intimava
Ela queria testar
O que minha mãe contava
De que eu lia perfeito
E sabia ler dum jeito
Que a todo mundo encantava

Eu era muito criança
E sentava ali no chão
Rodeada de folhetos
De história de Lampião
De soldado e imperador
De santo e de doutor
Só tinha homem então

E quem mais apreciava
Era minha vovozinha
Que sempre me convidava
Para ler lá na cozinha
E ao debulhar o feijão
Ou ao socar o pilão
Um verso sempre convinha

Ela sabia de cor
Todo folheto que eu lia
E ao varrer o terreiro
Uns versos ela fazia
Falava sempre de amor
De fome, fé e calor
Filhos, roça e romaria

E eu amava essa avó
De nome Maria José
Que além de encantadora
Era uma pessoa de fé
Que me ensinava a ler
Mesmo sem ela saber
Como se escreve mulher

Então eu me perguntava
Por que não fazer um verso
Já que em todo folheto
Do homem era o universo
E lá pela adolescência
Já com outra consciência
Trouxe à tona o controverso

Eu nasci lá em São Paulo
Em face do êxodo rural
E meus pais sempre migravam
Quando as coisas iam mal
Do sudeste ao Ceará
E eu sempre ia parar
Naquele velho quintal

Foi assim por muito tempo
Da metrópole ao sertão
Folhetos iam comigo
Em toda ocasião
Na escola nunca os li
E daí eu resolvi
Lançar meus versos então

Há tempos eu escrevia
Porém nunca publicava
Assumi a ideologia
E por ela militava
Feminista-socialista
Isso já dá uma pista
Do que a mente tramava

Eu sequer tinha dinheiro
Para publicar cordel
Morava em Juazeiro
Onde há folheto a granel
A maioria machista
Racista ou direitista
Cumprindo triste papel

Ali eu era estudante
E também trabalhadora
Além de ser militante
De causas libertadoras
Diante de opressão
Violência e omissão
Lancei rima transgressora

Então no século vinte
No ano noventa e quatro
Eu dei à luz uma filha
E pari no mesmo ato
O meu primeiro cordel
Publicado em papel
De tradicional formato

Esse é o primeiro folheto
Segundo as pesquisadoras
Que denuncia o machismo
De forma arrebatadora
Falando de violência
E propondo resistência
Contra a cultura opressora

Trata-se de um manifesto
Contra o patriarcado
Publicado numa terra
Onde muitas tem lutado
Contra a frequente matança
De mulher e de criança
Que tem nos mobilizado

Foi assim que inauguramos
O feminismo em cordel
E assim continuamos
Rimando embaixo do céu
São muitos os exemplares
Que já atravessam mares
Cumprindo o seu papel

Vale dizer que a ideia
Era então dialogar
Com as mulheres do povo
Lá no sul do Ceará
Onde eu distribuía
Até mesmo em romaria
Quando eu vivia por lá

Com os meus parcos recursos
Eu custeava os cordéis
Usava em minicursos
Até entre bacharéis
Mas foi para estimular
Feminismo popular
Que eu ampliei o viés

Como nasci em favela
Filha de uma mulher preta
Trouxe a questão da classe
Descrita pela caneta
E o tenebroso racismo
Que com o capitalismo
Compõe a velha roleta

Assim narrei as histórias
Das mulheres oprimidas
Também registrei as glórias
Das que curaram feridas
Mulheres empoderadas
Que ao longo da caminhada
Vão avançando na vida

Discuti o oito de março
E a condição das mulheres
Que vão se organizando
E metendo suas colheres
Nos espaços de poder
De arte e de saber
Mudando caracteres

No Cariri cearense
Onde tudo começou
Pela voz de outras mulheres
Minha rima se espalhou
Foi pro teatro e cinema
Virando até novena
Dedicado ao meu amor

O cordel “Maria Helena”
E o “Lesbecause” também
Eu fiz pensando na cena
Do ato de querer bem
Entre duas lesbianas
Que ralam xana com xana
E ainda dizem amém

Além destes muitos outros
Como o “Lugar de Mulher”
Ou mesmo o “Mulheres Fazem”
Ou “O que é ser mulher?”
Tem sobre cidadania
E também biografias
Tem cordel pra quem quiser

E lá se vão mais de cem
Somente sobre este tema
Rimo ao que a vida convém
Este é meu estratagema
Pra debelar o machismo
Racismo e capitalismo
Enquanto estiver em cena

Meus cordéis vão por aí
Cumprindo sua missão
Na casa de Dona Joana
Ou naquela intervenção
Que as jovens estão fazendo
E com ela se atrevendo
Ao machismo dizer não

E para se espalhar mais
Do que já tem circulado
Em revistas e jornais
E em tese de doutorado
Minha querida Sammyra
Que é amante da lira
Criou um blog engajado

O “sítio” Cordelirando
Na página da web
Onde ela vai postando
Tudo que essa doida escreve
Permite que minha rima
Atraia feito um ímã
Todo mundo em tempo breve

Mas vale a pena lembrar
Que lá no ano dois mil
Um grupo de cordelistas
Pelo Cariri surgiu
Denominado Mauditos
Quebrando os interditos
E abalando o Brasil

Do grupo também fiz parte
E com ele me somei
Foi algo novo pra arte
E ali muito avancei
E o meu cordel feminista
Consolidou a conquista
Da qual muito me orgulhei

Então mais recentemente
Já em dois mil e catorze
Algo marcou minha mente
E melhorou minha pose
Pois um conjunto de amiga
Que comigo se interliga
Deram-me uma apoteose

Celebraram os vinte anos
Do meu modo de rimar
Foi o ato mais humano
Que pude experimentar
Amizade e muito amor
O Cariri preparou
Para a data registrar

Eu fiquei muito feliz
Vendo minhas companheiras
Ali perto da Matriz
Numa festa alvissareira
Feita com tanto carinho
Do qual provei o gostinho
Numa noite prazenteira

Foi mais ou menos assim
Que a coisa começou
E cresceu devagarim
Até que se espalhou
Pois meu cordel-feminista
E anticapitalista
É o que tenho de valor

Depois de mim outras rimas
Começaram a deslanchar
E eu fico muito contente
Pois gosto de estimular
Pois quanto mais é melhor
Pra eu não me sentir só
Neste meu cordelirar

Mas por questão de justiça
Eu reconheço a matriz
Pois ela foi a primeira
Cordelista de raiz
Que me inspirou nesta vida
Me dando amor e comida
E rima pra eu ser feliz

A velha Maria José
La do sul do Ceará
Mulher de fibra e de fé
Que nunca pode estudar
Foi o ser que me ensinou
E o meu cordel só brotou
Porque ela soube aguar

Amante da tradição
De cordéis masculinistas
Foi ela a inspiração
Para a neta feminista
Sem ela eu nada seria
Dela eu herdei energia
Para virar cordelista

Em resumo foi assim
Que a coisa aconteceu
Não houve antes de mim
Um cordel igual ao meu
Onde as mulheres existem
E dia a dia insistem
Em ocupar o que é seu

Por isso é que todo mês
Pras Deusas faço meu verso
Para agradecer à Fonte
Onde o Verbo está imerso
Minha avó, minha heroína
Eu sigo sendo a menina
Que ama teu Universo


Salete Maria

Abril/2015

2 comentários:

Ilana Sodré disse...

Belíssimo cordel!
Embora soubesse o que era um cordel, tive contato com ele faz pouco tempo.
Fiz para uma das minhas matérias da faculdade uma reportagem e me apaixonei.
Essa arte é incrível e seu cordel é apaixonante!!!
Parabéns!!!

mulhernegra disse...

Como todos os seus cordéis - show! Parabéns professora Salete Maria.